domingo, 15 de junho de 2008

Capítulo 18: Reverência a um herói esquecido

Realmente eu entendo porque sou adorado por milhões de pessoas no mundo. Todos precisam de uma referência para se espelhar e, quem sabe, um dia alcançar sua magnitude. Comigo não é diferente. Antes de ser um super-herói indestrutível, gostoso e sarado, sou uma pessoa com todas as características de um ser humano qualquer. Assim como vocês, que me adoram, também possuo um ídolo, este que merecia notoriedade tão intensa quanto a dos meus amigos Super-Man, Batman, Hulk, The Flash e Mulher Melancia. Trata-se de uma figura lendária em Quissamanduca: Setembrino Buscapé, um autêntico Highlander em toda região.
Filho de família humilde, Sete (por uma dessas coincidências inacreditáveis, a contração do nome era o números de dentes que meu herói tinha na boca) sempre teve de se virar para conseguir ajudar no sustento de casa. Seu pai, Justino Simandei, foi tomado de um mal súbito e abandonou a família assim que Setembrino nasceu. Dizem que ao ter o filho pela primeira em seus braços, seu Justino, sob o efeito do mal, tentou trocar o menino por três panelas e uma vassoura. Indignado com a proposta, o dono do armazém não topou: queria mais cinco pratas de forra.
Convivendo com a sensação de rejeição, Sete era um garoto solitário. Nós tentávamos nos aproximar, jogando um pouco de ração pra ele, mas quando se virava para nós, não ficava um pra contar história. Mesmo assim, eu admirava sua perseverança e força de vontade. Ele era uma pessoa capaz de se reerguer após as mais complicadas adversidades. Logo em seu primeiro emprego, deu provas de tamanha tenacidade e resistência. Era sub-assistente auxiliar de servente em um prédio no centro da cidade. Foi nesta atividade que, pela primeira vez, viu a morte de perto. Escalado para a função de eletricista, Setembrino deveria instalar a luminária da torre, que ficava a uma altura de 78 metros do árido solo de Quissamanduca. Colocado em uma catapulta, foi arremessado em direção ao alvo (devido à sua reconhecida rapidez, Sete teria de colocar a lâmpada gigante na tomada enquanto estivesse sobrevoando o local. Foi antes do lançamento que ele ganhou o apelido de Buscapé). Porém, como o cálculo não foi muito preciso, meu herói da infância passou dois quilômetros do desejado e foi parar no rio Paraguaçuá, conhecido por ser reduto de perigosos tubarões sanguinários (são os únicos no mundo que vivem em água doce). Após uma hora e meia lutando contra os predadores (ele contou 32), conseguiu escapar para espanto dos companheiros que, inexplicavelmente, promoviam uma festa de arromba quando ele retornou. Protegido por Deus, Setembrino sofreu apenas escoriações pelo corpo, porém perdeu as calças e um pedaço do órgão genital que foi encontrado uma semana depois boiando na margem do rio (inicialmente, os pescadores acreditavam ser uma espécie de peixe rola). Refeito do infortúnio, Sete ainda sofreria novo golpe ao retornar ao trabalho no dia seguinte. Fora demitido pelo tirano chefe de obras, Aderbal de Decana, que não se conformou com o fato de a tarefa não ter sido cumprida.
Necessitando muito de trabalho para ajudar sua mãe e os 18 irmãos menores, Setembrino foi atrás de novo emprego e, graças ao bom coração de seu Venério, dono do frigorífico da cidade, conseguiu novo trampo. Seria segurança. Preocupado com a onda de assaltos que assolava Quissamanduca (em menos de uma semana, já tinham sido roubadas duas latas de lixo, uma placa de Proibido Mijar no Poste e uma tampa de bueiro), Venério resolveu colocar alguém 24 horas tomando conta das carnes, e incumbiu Sete de fiscalizar a carga. A tarefa não era das mais árduas, o problemas mesmo era suportar os 45 graus abaixo de zero da câmara frigorífica. Zeloso com a saúde de seu novo empregado, seu Venério providenciou um gorro e uma camisa de mangas compridas (tinha um pequeno rombo na altura da axila direita). Competente ao extremo, Setembrino cumpriu a risca sua função, permanecendo por seis dias e seis noites em seu posto. Após trabalhar de segunda a sábado, ele folgaria no domingo. Folgaria, porque como ficou congelado, teve de passar o descanso sob forte processo de derretimento.
Eu poderia passar horas lembrando momentos inesquecíveis do esquecido grande herói, mas terminarei relatando o feito titânico que praticou, o maior de todos. Em uma bela tarde de sol, que fazia Quissamanduca parecer o Sudão, Setembrino ajudava a catar piolhos na cabecinha juvenil de seu irmão caçula, Da Cu (era pra ser Da Cunha, mas o escrivão passou mal na hora que anotava e faleceu. Com a confusão do ocorrido, ninguém se ligou que ainda faltava uma sílaba), quando viu sua avó cega, a doce Rosenalva, andando em direção à fossa, que estava a um metro dos pés cansados da pobre velhinha. Em uma atitude só comum aos seres iluminados, Sete partiu como uma flecha em direção à sua vovó e, a um passo da vala de excrementos, empurrou a senhora, salvando-a de uma tragédia maior. No entanto, Setembrino não contava com a infelicidade de escorregar no chão sebento do local e, perdendo o rumo, mergulhou de cabeça no buraco cheio de cocô, com uns três metros de profundidade. A apreensão tomou conta de todos. Primeiro, porque ao salvar sua avó, Sete acabou utilizando força excessiva, a velhinha saiu catando cavaco e despencou a ribanceira; e depois com a saúde do herói. Porém, cerca de dois minutos depois, para espanto de todos, eis que ele surge imponente das profundezas daquele poço de merda. Deste dia em diante, Setembrino Buscapé passou à imortalidade para todos os habitantes, vivos e mortos, de Quissamanduca Town. Toda vez que tosse, cospe um toletinho de cocô. Mais de trinta anos depois, Sete ainda segue carrega consigo lembranças daquele episódio. Toda vez que tosse, cospe um toletinho de cocô.

Um comentário:

Unknown disse...

Sabe Eu não quero encher sua bola não , mas tenho q dizer:Quando entro aqui neste espaço e começo a ler suas estórias vendo os nomes dos seus personagens,crio a cada um uma fisionomia e me sinto no mundo da fantasia.Incrível como éh forte!Isso sim éh mágico!
Não precisa ser necessariamente dito,nós sabemos que em vc existe uma mente bilhante neh!?
vc éh um pouco de tudo o que se pode dizer quando a emoção toma conta de vc por inteiro e as palavras parecem se divertir com sua situação e vc consegue uma comunicação honesta construindo uma substância dramática,comica envolvente e ao mesmo tempo,e com naturalidade e prazer.
Parabénsssssss
Edu
bju bju