sexta-feira, 12 de junho de 2009

Capítulo 23: Um Domingo no Parque

A lembrança de Zoltan sendo linchado pelas crianças me fez recordar de Cleitoválter, filho de minha comadre Sebastiana, que era irmã da tia da avó da vizinha de seu Bionor Elha, um pacato velhinho que cuidava do maior puteiro de Quissamanduca, o Colossu Ruba. Cleitoválter era um menininho ruivinho, cheio de sardas, com carinha de anjo. Carinha, porque aquilo era o cão. O moleque foi expulso das três escolas que existiam em Quissa, sendo que chegou a sair algemado da primeira vez. E tinha só dois anos. Ele invadiu a sala da diretora da Escola Santa Eutanásia Malagueta, o estabelecimento de ensino mais tradicional da região, e tentou estuprar a madre superiora, freira Dolores, um velhinha de 89 anos. Após esse episódio rumoroso, Cleitoválter foi matriculado no Internato Dom Cabrito Numberra, mas permaneceu lá somente uma noite, pois no dia seguinte descobriram o cocô gigante que ele depositou sobre a mesa e, consequentemente, sobre a coleção de selos raros do diretor Olegário Borborema, que teve um ataque cardíaco e morreu ao ver o descomunal tolete repousando sobre seus amados selinhos. Concluindo a trajetória acadêmica, Cleitoválter foi conduzido (a expressão é essa mesma) ao Reformatório Saddam Hussein. Lá o moleque não teve vida boa e permaneceu por mais tempo: três dias. Numa áspera discussão com um interno, Clei se descontrolou: mordeu e arrancou um das orelhas do colega, sendo imediatamente expulso e deixando o local num camburão e ainda mascando a orelha. Essa breve apresentação faz-se necessária para que vocês, meus fãs queridos de todo o planeta, entendam meu desespero ao receber a ligação de minha comadre Sebastiana me pedindo para ficar com Cleitoválter durante o domingo, pois ela viria ao Rio para um batizado na Favela do Fubá Queimado, mas foi proibida por Nozão do Pó, chefe do tráfico local, de subir lá com o filho. A razão era simples, um ano antes eles passaram o feriado do Zumbi dos Palmares na comunidade e Cleitoválter tocou um terror, chegando ao ponto de fazer Nozão ter uma incontrolável crise de choro após ver Clei mijando num carregamento que acabara de chegar fresquinho da Bolívia. Outro motivo forte para que minha comadre não levasse o garoto era o temor de ele afogar o bebezinho na pia batismal. Isto posto, e sem alternativa, disse à comadre que, com a ajuda do Senhor, poderia sim ficar com Clei durante algumas horas.

E chegou o maldito domingo. Por volta das 13 horas, batem na porta do meu quarto, e meu coração quase parou. Então, pego uma medalhinha de São Francisco de Assis, aquele dos animais, faço uma breve prece ao santo e, segurando a medalhinha, caminho vagarosamente até a porta, talvez esperando ser fulminado por um raio e não ter de abri-la. Coloco a mão na maçaneta que, para tornar a tensão ainda maior, sai na minha mão. Trêmulo, consigo por a maçaneta no lugar e abro a porta bem devagar. Naquele instante teria início algumas das piores horas da minha gloriosa vida de herói. De súbito, levei um bico no saco. Após me ver cair, Cleitoválter entra correndo pelo quarto, pisando, antes, na minha cabeça. A dor absurda em minhas partes baixas e a falta de ar provocada pelo petardo que veio de baixo pra cima que me fez subir mais de um metro me fizeram imaginar que estava morrendo. Apenas como registro, após o impacto a medalhinha de São Francisco voou da minha mão e nunca mais a vi.

Enquanto eu tentava, ainda estirado no chão, voltar à vida, ouvi aquele moleque safado dizer que queria ir ao Mundo Encantado do Zé, o parque de diversões de Santa Cruz. Me apoiando na parede, eu me levantei e, com muito esforço pra falar, disse ao garoto: “Tudo bem, mas se você não se comportar lá, eu me mando!”. Ele aceitou o trato e, depois de mais um tempo me refazendo, fomos ao parque que ficava a uns cinco quarteirões da pensão do Vasco. Durante o caminho, Clei se distraía arremessando rebocos nos velhinhos que passavam, enquanto eu seguia meio à distância rezando um terço de Itu que ganhei numa rifa. Finalmente chegamos ao parque, que era realmente um espetáculo. Dentre as várias atrações, havia a Corrida Radical (as crianças entravam num caixote amarrado nuns jegues que saiam em disparada por um capinzal); o Trem Fantasma (um trenzinho que demorava meia hora pra percorrer um túnel se cinco metros repleto de monstros, caveiras e pôsteres da Elza Soares); Monga, a mulher Gorila (a moça que vestia a fantasia era uma das bilheteiras, reconheci pelo bafo); um leão de verdade (o bicho dava pena, era tão velho que a juba era branca e ele só tinha quatro dentes inteiros na boca); e a maior de todas as atrações, Demétrius, um equilibrista que, dizem, chegou a trabalhar num famoso circo da Espanha, mas como porteiro.

Logo ao chegarmos, Cleitoválter pediu um algodão doce, mas a onda dele não era comer a guloseima e sim pegar o pauzinho e sair espetando a bunda das mulheres. Ao ver o leão, que se chamava Osvaldo, Clei parou. Nesse momento, temi mesmo pelo futuro daquilo que um dia foi um animal selvagem. Cleitoválter foi se aproximando do leão que, magro que nem a porra, seguia olhando pro chão e não parava de chupar um punhado de capim que colocara na boca de manhã. Ao reparar que Clei estava a dois palmos de distância, o leão ergue a cabeça, olha pro garoto e lentamente abre a boca mostrando os quatro dentes (o quarto ficava lá atrás, mas dava pra ver) e o chumaço de capim na língua. O domador ainda previu o que estava por acontecer e, com a voz embargada, implorou a Cleitoválter: “Não faz isso não!”. Foi aí que, com a rapidez de um samurai, Clei dá uma tapa nos córneos do Leão. Realmente foi duro ver o bicho sair rolando pela direita, derrubar o domador e depois o biombo que servia de parede pro banheiro coletivo. A gritaria foi geral, um corre-corre danado. A cena da velhinha sentada no vaso e gritando que o mundo estava acabando não me sai da lembrança até hoje. Temendo que descobrissem que Clei fora o causador do tumulto, peguei o moleque pelo braço e saí correndo pra outra parte do parque. Antes eu tivesse ido embora. Paramos em frente à barraca de Demétrius, o equilibrista. Uma pequena multidão assistia quieta àquele cara alto, de bigode e enfiado num ridículo collant rosa e azul equilibrar com a cabeça um monte de copos cheio de água. Realmente era impressionante, tinha mais de cinquenta copos. E ainda havia um baixinho em cima de uma escada se preparando para colocar mais um. Minha clarividência de super herói me alertava naquele momento que algo terrível estava por acontecer, e imediatamente procurei Cleitoválter. Tarde demais. Aquele filho da p. já se preparava pra arremessar uma laranja parruda que ele achara no chão. Eu ainda gritei: “Nããããããooooo!!!!!!”. Mas foi em vão. O laranjão parecia um torpedo e foi direto na testa de Demétrius. A porrada foi tão grande, que a laranja voltou em sentido contrário e acertou a boca do palhaço, uma barraquinha que ficava na outra extremidade do parquinho. Com o impacto, antes de desmaiar, o equilibrista quase se afogou com tanta água que caiu sobre ele. Foi aí que, temendo que Cleitoválter demolisse inteiro o simpático Mundo Encantado do Zé, resolvi pegar o moleque e sair às pressas do local, devolvendo aquela criatura do inferno pra minha comadre, que já voltava do concorrido batizado.

Graças a Deus, essa foi a última visão material que tive desse moleque (em alguns pesadelos ele já deu o ar da graça algumas vezes). Informações não confirmadas dão conta de que Cleitoválter, hoje um rapaz, teria fugido de Quissamanduca, indo a pé até o Iraque e se tornado membro da TET, Trope de Elite Talibã.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Capítulo 22: Zoltan, o Mestre dos Mágicos

Bem, antes de iniciar mais uma capítulo da minha impressionante história, preciso revelar ao planeta o motivo que fez com que me ausentasse de meu blog por tanto tempo. Devido a um infortúnio, tive de deixar a cidade por alguns meses. Em uma das minhas diversas atividades comerciais (sempre topei qualquer parada pra arrumar algum), conheci uma moça muito bonita, chamada Leonor. Éramos colegas no salão de beleza Meson Futun. Ela trabalhava como manicure e eu exercia uma função indispensável para o bem estar físico e emocional de todos no local: trocava o papel higiênico do banheiro. Pois bem, com o passar do tempo, eu e Leonor vimos que éramos feitos um para o outro e iniciamos um tórrido romance. Porém, forças externas impediram que esse enredo tivesse o final desejado por nós dois. Na realidade, Leonor era amante de Carlão Navalhada, o banqueiro que comandava o jogo do bicho em toda a zona oeste. Para a minha infelicidade, o moço descobriu meu caso com Leonor. Alertado por meus amigos, fiquei sabendo que Carlão estava chegando à pensão do Vasco com a intenção de me capar. Felizmente, sempre tive o raciocínio rápido e imediatamente deixei a cidade, me instalando em uma tribo de índios no interior do Piauí (um amigo tinha uma oca alugada lá e me ofereceu abrigo). Para não correr nenhum risco de exposição desnecessária, e consequente possibilidade de ser encontrado por aquele contraventor malvado, me acomodei durante seis meses debaixo da cama (era um povo bem moderninho) de uma índia velha. Até hoje me lembro do nome daquela aborígene: a amável Teta Numbigo. Voltei à pensão do Vasco quando soube que Carlão, graças a Deus, havia morrido numa explosão causada por seu inimigo Capitão Furacão, agora o novo manda-chuva da área. Mesmo com Carlão fora de combate, não pude reencontrar Leonor, que após o enterro do bicheiro fugiu da cidade com o padre que encomendou o corpo. Tudo explicado, vamos voltar à minha saga.

Como mencionei, sempre tive de correr atrás para conseguir dinheiro e cuidar da minha sobrevivência. Apesar de ser um super-herói corajoso, invencível e lindo, eu não tinha um puto no bolso e precisava me virar, encarando o que viesse pela frente. Certo dia, estava lendo a parte dos classificados do jornal (seu Vasco sempre deixava um exemplar no banheiro da pensão) quando me deparei com um anúncio interessante. “Recruto super-heróis. Pago bem.”. Sentado no trono, eu anotei o endereço e, após desproduzir o almoço (naquele dia foi canja de galinha com farinha), segui direto para o local. Ao chegar, me deram um papelzinho com o número 6 e me mandaram para uma salinha, onde havia outros cinco caras. Tinha um Batman, um Capitão América, um Tarzan, um Papai Noel e um Chapolim Colorado. Após uma rápida analisada, vi que aqueles concorrentes não seriam páreo para mim. A barriga do Batman era uma vergonha. A roupa, que tinha na gola uma etiqueta velha da Mesbla (acho que faliu há mais de 20 anos) devia ser uns três tamanhos abaixo, tanto que o umbigo (estufado) parecia até um olho em alto relevo. O Tarzan, coitado, era o oposto, osso puro. O bicho era tão magro que foi dar um levantada pra pegar uma água e a tanga caiu. Já o Papai Noel só podia tá de sacanagem. Mas o Chapolim tinha estilo, só que chegou bêbado e tava dormindo no sofá. Deixei o Capitão América por último de propósito. Logo quando cheguei, vi que ele me olhou estranho, e veio logo falar comigo: “Nossa, Spider, amei sua sunga!”. Não gostei do comentário. Achei impertinente, mas fingi que não escutei. Mas o cara insistiu: “Uhm, deixa eu ver o tecido!”. Ao sentir a patolada, o sangue subiu. Dei-lhe uma tapa na orelha e o tempo fechou. O Papai Noel arremessou o saco na minha direção, mas acertou o Tarzan, que, com o impacto, atravessou a porta de vidro e foi parar dentro do elevador de serviço do prédio. Depois de dois minutos tentando se levantar (a barriga dificultava os movimentos), o Batman segurou o Capitão América, que lhe deu um beijo na boca. Rapidamente, os dois saíram de mãos dadas e foram embora. Enquanto eu dava umas porradas no Papai Noel, o Chapolim permanecia imóvel, deitado no sofá. Bêbado feito uma gambá, o cara roncava com a boca aberta e não viu o fuzuê. Com a confusão, entrou na sala um homem esquisito, baixinho, de cavanhaque e todo de preto. “Mas o que é isso?”, gritou. Com a roupa toda rasgada (quem mandou tacar o saco em mim? Não tive pena mesmo), o Papai Noel foi logo descartado pelo cara, que mandou dois funcionários do prédio carregarem o Chapolim pinguço (ele deixou o escritório dentro de um carrinho de mão) Como só sobrou eu, o homem se apresentou: “Muito bem, meu nome é Rudimilson. Coloquei o anúncio no jornal porque estou precisando de alguém que sirva de super-herói em festas infantis. Sou mágico e me apresento sozinho. Mas sinto que a criançada fica meio de saco cheio dos meus números, e quero diversificar. Gostei do seu estilo, e acho que você vai se dar bem nessa. O trabalho é moleza, você enche a pança e ainda te pago trinta pratas por evento. Tá dentro?”, perguntou o mágico. “Na falta de coisa melhor, respondi de pronto: “Começo quando?”. Rudimílson disse que no dia seguinte já teria uma festa, que prometia bombar. Era em Santíssimo, pra 200 pessoas. O aniversariante era um garoto chamado Jurandir e o pai resolveu gastar, alugando um salão de festas, quer dizer, um galpão de festas. Rudimilson marcou comigo no escritório para irmos juntos.

Cheguei no horário determinado e toquei a campainha. Quando a porta abriu, não me contive, tive um ataque de riso que durou mais de meia hora. Rudimilson, que tinha pouco mais de um metro e meio, estava vestido com uma roupa lilás, uma capa que era maior que ele e um turbante branco com uma pedra brilhante ao centro. Eu cheguei a ser demitido enquanto ria, mas readmitido em seguida, pois o mágico tinha de cumprir o acordo feito com o contratante e apresentar a atração da festa, o Spider-Man. Chegando ao estacionamento fomos em direção a um fusca que estava estacionado entre uma bicicleta e um velotrol (pra quem não lembra, era uma espécie de velocípede de plástico). Ainda sem conseguir parar de rir, entrei no automóvel e, pra tentar me distrair e manter meu emprego, peguei pra ler um folheto que estava no chão do fusca. Estava escrito “Zoltan, o Mestre dos Mágicos”. Não é preciso comentar que tive nova crise, desta vez chegando a chorar de tanto rir. Indignado com minha reação, Rudimilson, ou melhor, Zoltan, me ameaçava: “Se não parar agora, eu demito você depois da festa!”. Precisando muito daquele emprego, fiz valer uma técnica que aprendi com os monges do Convento dos Capuchinhos Alienígenas. O procedimento era simples: para cessar imediatamente um incontrolável acesso de riso é necessário tão somente se concentrar em algo horrível. Imediatamente, voltei no tempo em que fiquei escondido embaixo da cama de Teta Numbigo e via, de uma posição privilegiada, aquela índia velha pelada todos os dias. Bem, depois de ficarmos presos num trânsito infernal (uma das ruas próximas estava interditada por causa de uma feira, chegamos ao local da festa. O evento realmente prometia. Ao entrarmos, fomos recepcionados pelas crianças que, excitadas com nossa chegada, pularam em cima da gente e nos derrubaram com tapas e bicos de todas as formas (tinha um miserável de um gordinho que mandava ver com uma ripa de madeira). Depois de uns 15 minutos tentando sair daquela sessão de espancamento, finalmente consegui me libertar e correr em direção à mesa do bolo. Foi aí que tomei conta da festa No desespero de me salvar do linchamento, corri tão rápido que não vi um dos garçons. O impacto foi inevitável, o que fez com que a bandeja com refrigerantes voasse alto em direção a uma mesa com oito senhoras, cuja mais novinha devia ter uns 85 anos. A bandeja de alumínio girava e se aproximava velozmente da testa de uma das velhas. Porém, em um reflexo que somente os super-heróis de verdade possuem, joguei minhas teias em direção ao objeto voador, que parou a um palmo dos córneos da coroa. Naquela instante, todos no recinto exclamaram: “Oooooohhhhhhhhhhh!!!!”. Aplaudido freneticamente pela multidão, agradeci o carinho e encaminhei na direção da mesa daquelas idosas para me certificar se estavam todas ok. “As vovós estão bem?”. Para meu espanto, nenhuma das oito acompanhou o ocorrido, e seguiam animadas numa disputada partida de bingo. Ao me ver chegando, um delas se pronunciou: “Meninas, o garçom chegou! Eu quero um chops! Eu quero um chops!!!”. Aliviado por estarem todas inteiras (ou quase), fui caminhando pra lateral do galpão, quando me toquei que não avistava Zoltan. Me aproximei do pai do aniversariante e perguntei onde estava o mágico. “Ah, ele está brincando com as crianças. Ele é muito bom!”. Foi nessa hora que reparei um tumulto do lado oposto de onde eu estava. Disfarçadamente (peguei emprestado uma revista e fingi que estava lendo) cheguei perto e pude ver o que ocorria. Todo pintado de verde e cheio de espuma, Rudimilson foi pendurado em um varal e servia de mira pros moleques que arremessavam tudo que tinham nas mãos (lembram do gordinho? Pois bem, esse chegou a tacar uma cadeira!). Exatamente naquele instante, um dos molequinhos gritou: “Cadê o Spider! Agora é a vez dele!”. A percepção de um herói tem de ser aguçada, isso nos faz diferentes das pessoas comuns. Senti que era o momento de deixar o local e, cortando caminho pela cozinha improvisada, deixei correndo o galpão e, mais uma vez, escapei com denodo das garras de malfeitores sanguinários, o que me permite estar aqui e ser esta lenda viva para a humanidade.