sexta-feira, 17 de maio de 2013

Capítulo 26 - Não estamos sós



Muitos devem se lembrar do episódio que passei na Casa da Mãe Candinha (capítulo 16). Aquilo apenas fortaleceu o cagaço que sempre tive de coisas referentes ao além e adjacências. Como autêntico super herói, não tenho medo de nada vivo (exceto, claro, algumas baratas parrudas, Cleitoválter e Tunim Podridão), mas o que já passou dessa pra melhor realmente tira um pouco o meu foco e não me traz boas recordações, como contarei a seguir.
 
Irajá era um amigo de bar, parceiro mesmo, daqueles que não te deixava sozinho em momento algum da esbórnia. Manguaçado ao cubo, era sempre o último a sair, devidamente carregado pra fora do Salum Briga e deixado sempre estirado na porta de casa. Era querido por todos, até pelos animais. A alegria da cachorrada do bairro, que lambia freneticamente os córneos daquele fiel pudim de cachaça. Cãezinhos de outras localidades também vinham fazer a festa. Alguns até mijavam nele. Até que um dia uma fatalidade pôs fim ao meu amigo. Na realidade, apenas se cumpriu a antevisão de sua sábia mãe, que profeticamente escolheu o nome: Irajá. E ele foi.

Como acontecia um dia sim e o outro também, meu velho companheiro, após beber até a água do aquário que ficava no balcão (os quatro peixinho coloridos e a bolinha de gude que os moleques jogaram lá dentro foram junto), foi retirado do bar por Joca Pivara, atendente do boteco, e que naquele dia foi um completo irresponsável em sua missão. Deu no que deu. Ao avistar Solange Mustangue, uma mulata de parar o trânsito que trabalhava de babá na casa de Gregório Chapeleta, servindo de ama-seca para o pequeno Jeremias, de um aninho (dizem as más línguas que os irmãos Sandoval, de 15, Alípio, de 17, os gêmeos Dorival e Dovaril, de 22, e o próprio Chapeleta caíam também nos peitos daquele Mustangue turbinado), Joca largou Irajá de qualquer jeito no chão e disparou atrás de Solange. Meu querido amigo foi deixado de cara pro cimento e bunda pra lua. Como acontecia em todas as noites, lá veio a cachorrada, e, ao que tudo indica, um dos cães mais animados puxou as calças já frouxas de Irajá e dividiu a indumentária com os demais amiguinhos, deixando meu colega e suas desprotegidas nádegas expostas ao Deus dará. Mas quis o destino que, impressionantemente excitado após ser desprezado pela eguinha Pocotó, Luis Ignácio (o jegue que servia de locomoção para padre Loxa) fugisse naquela mesma noite do terreno baldio da paróquia e fosse ao encontro de Irajá e sua bunda desamparada. Ao avistar aquele busanfã branco e encachaçado, o jegue (que, segundo testemunhas, chegou a lamber os beiços) partiu feroz para saciar o clamor de sua virilidade. E Irajá morreu.

A comoção foi geral. Em homenagem ao passamento do intrépido cliente, seu Vasco decidiu eternizar a mesa 10, colocando a placa “O Salum Briga reverencia o nosso Pudim de Ouro” e decretou luto oficial de três dias.

Por questões de fluxo excessivo (foram 36 velórios seguidos), o enterro foi marcado excepcionalmente para as 22 horas do dia seguinte. A cerimônia anterior seria às 17, mas como o “encomendador” da alma era Joca Metralha (que demorava coisa de dez minutos pra falar “oi”), a do Irajá foi empurrada pra cinco horas mais tarde.
Emocionado, cheguei ao último encontro com meu amigo vinte minutos antes do horário marcado e, para o meu espanto, a única pessoa que avistei na sala foi justamente o “anfitrião”, enrolado com a bandeira do bloco “Segura que eu Chupo” e já devidamente acomodado no caixão. Me aproximei para uma última conversa com meu amigo. Mas arrepiou legal quando olhei pra Irajá. Ele estava com os olhos esbugalhados, vesgo e com a boca aberta, parecendo que ia gritar. Essa foi sua a última expressão na vida, que se foi no exato momento da impiedosa perfuração feita pelo jegue Luiz Ignácio.

Refeito do susto, comecei a conversar com meu velho parceiro, quando surgiu um ruído fino, que foi aumentando de volume. Aquele som era apavorante e inconfundível: um pum. Foi um peido de aproximadamente dez segundos de duração. Olhei para Irajá que, felizmente, se mantinha imóvel no caixão. Naquele salão imenso, eu não avistava mais ninguém, somente o defunto. Sabia que não tinha sido eu, e só sobrava Irajá. Ainda peguei a mão do meu amigo (gelada que nem a porra) pra ver se estava amarela, mas a bicha tava branquinha feito vela. Mal tive tempo de iniciar uma reflexão, porque subiu uma murrinha desgraçada. Um fedor impressionante tomou conta do recinto. Tonto e vendo tudo embaçado, tentei me segurar numa das alças do caixão pra não cair, mas foi em vão. Fui perdendo os sentidos e, com flashes sobre momentos da minha vida, arriando lentamente. Deitado no chão, buscando ar para tentar não fazer companhia a Irajá, abri os olhos marejados e, mesmo com a visão prejudicada pelo desfalecimento, visualizei a explicação para tal fenômeno, que nada tinha de mediúnico. O responsável por aquele pum maldito não fora Irajá nem algum fantasma porcalhão. De terno e gravata, igualzinho a um noivo de bolo, anão Carlos (que chegara ao velório antes mesmo que o morto e "aparecera" no salão depois de passar duas horas tentando, sem sucesso, cagar no banheiro dos funcionários) me revelou: não tô legal, Spider. Deve ser o cozido.

Capítulo 25 - Viagem Inesquecível (parte 2)


Guiando um carrinho de supermercado, a aerovelha passava de banco em banco para oferecer o lanche, que era um pão com ovo, um copo de refresco de caju (quente) e uma mariola pra sobremesa. Ao chegar na vez de Tunim Podridão, o paquiderme, guloso que nem a porra, pegou logo oito pães e já saiu matando. Eu peguei o meu kit e também tratei de comer logo antes que Podridão transformasse meu pãozinho com ovo em presa. Depois de lanchar, resolvi ir até a tripulação pra tirar umas dúvidas sobre o trajeto. Quando abri a porta da cabine, vi o negão pilotando só com o braço direito, porque o esquerdo tava pra fora da janela, com sua mão segurando um cigarro. Os dois assistentes disputavam uma animada partida de purrinha (palitinho, dependendo da região). Nada disso, porém, me impressionou mais do que a imagem que vi sobre painel de controle: uma garrafa aberta de cachaça (a Fogo no Rabo)...praticamente vazia. Instintivamente, olhei em direção ao retrovisor que tanto estranhei no início e pude ver o olhar perdido do piloto: os olhos do negão eram duas bilhas tão vermelhas que parecia ter usado groselha como colírio. Bem, claro que depois disso só me restou voltar para o meu lugar e chorar muito, pois realmente senti que o fim estava próximo.

Depois de uns cinco minutos de um pranto que parecia incontrolável percebi que as emoções estavam só começando, pois ouço a voz de Tunim: “Cocô! Tunim qué cocô!”. Apesar de atordoado com o desfecho iminente, eu não estava surdo. Aquela criatura queria cagar e, pela expressão contraída, seria ali mesmo. Lembrei dos oito pães com ovo abatidos e, logo após o grito desesperado que dei, agarrei a cabeça de Podridão e, olhando bem dentro de seus olhos, supliquei: “Não, Tunim! Cocô, banheiro! Cocô, banheiro!” Graças ao bom Deus, Podridão teve piedade de nossas almas e se levantou, caminhando lentamente em direção ao toalete. Bom, acho que não preciso dizer que ele teve de entrar de ré, pois, por ser literalmente maior que a casinha, não teria como se virar caso entrasse de frente. A cena de Podridão sentando no vaso antes de fechar a porta foi a certeza de que a vida não tinha mais sentido pra mim. Acomodado em meu banco, olhei a corda de segurança e pensei em me enforcar, mas um cheiro inacreditável passou a tomar conta do ambiente e me desconcentrou. Percebi que, após aqueles vinte minutos que pareceram vinte segundos, Podridão caminhava de volta à poltrona, enquanto uma correria louca acontecia nos últimos lugares, deixando deserta a parte próxima ao banheiro. O ocorrido foi que aquele desgraçado despejou o que restou dos pães com ovo, dos copos de refresco quente de caju e das dezenas de mariolas no vaso sanitário, tudo em forma de merda. Os poucos segundos de porta aberta para Podridão sair do banheiro já foram suficientes para instalar o caos na aeronave. Para completar aquele cenário de sucursal do inferno, o avião não tinha ar condicionado e sim um ventilador de teto que não dava vazão. Foram novos momentos de pânico, que levaram o Bispo Juvenal (criador da Igreja Universal do Juvenal) a sugerir um suicídio coletivo. Os interessados colocariam cinquentinha num envelope pras despesas do translado da alma pro céu. Graças a Deus, um dos co-pilotos apareceu correndo com um lança-chamas e desinfetou o local com jatos de desodorante Avanço.

Dispensável dizer que, após os trabalhos intensos de Podridão, o banheiro do avião estava interditado para todo o sempre, passando a fazer sentido os penicos que integravam o kit-viagem. A aerovelha comunicou a todos que seria impossível usar a casinha devido ao estado lamentável deixado por Podridão. Eu imaginava que, após o aviso, ninguém corresse mais riscos, mas em um dado momento pude ver Bartholomeu Bonifácio, no alto de seus 132 anos, caminhando lentamente, porém determinado, em direção ao banheiro. Seu Bartholomeu era uma figura lendária em Quissamanduca, amigo de personagens ilustres da história do Brasil. Nascido em Portugal, veio ainda criança para o Rio de Janeiro. Aliás, Bartholomeu não é o nome verdadeiro do velho. Seu pai era um militante radical do partido comunista em Lisboa e resolveu registrá-lo como Bartholonosso, que dava um ar mais socialista. No entanto, com dois dias na Cidade Maravilhosa o nome verdadeiro caiu, e Bartholonosso passou a ser Bartholomeu. Em sua infância no Rio ele empinou pipa com Pedro II, pixava os muros com Zumbi dos Palmares, deu uns amassos na Anita Garibaldi e foi sacristão assistente do Frei Caneca. Na adolescência esteve na I Guerra Mundial defendendo seu país, quando ficou surdo depois de querer examinar se o canhão que carregava estava funcionando (ele colocou a orelha direita próxima à boca do canhão, e descobriu que estava funcionado). Namorador incorrigível, seu Bartholomeu até protagonizou um escândalo na época, quando foi acusado de pedofilia por, secundo denúncias, ter vivido um tórrido romance com uma mocinha “dimenor” que se tornaria atriz famosa anos depois, a Dercy Gonçalves. Temendo maiores presálias devido aos  inconsequentes atos libidinosos com a então pitéu, deixou as praias cariocas e foi se esconder em Quissa.

Mas, voltando ao avião, seu Bartholomeu, surdo que nem um pedaço de pau oco, não ouviu o aviso desesperado que a aerovelha nos fizera, e seguia firme rumo ao banheiro interditado, apertando o bilau com toda força pra não se mijar. Inclusive, segundo testemunhas, ele começara a andar em direção à casinha antes mesmo de Podridão chacoalhar o local, mas, pelo avançado da idade, estava chegando próximo à porta coisa de quase uma hora depois de sua partida. Apesar de toda rapidez super-heroica de movimentos, não consegui chegar a tempo de impedir que seu Bartholomeu entrasse no banheiro. E, o que era pior, ele se trancou. Quando cheguei, imediatamente coloquei um de meus ouvidos na porta e o que pude ouvir precariamente foi uma expressão abafada, porém meio desesperada, algo como “pulga que partiu e filho da fruta”, seguido de um barulho seco, como algo indo ao chão. Os momentos que se seguiram foram dramáticos. Uns tentavam arrombar a entrada para resgatá-lo com vida, outros rezavam com as mãos dadas já encomendando a alma do velho. Claro, Bispo Juvenal já estava na área e pedia cinco pratas dos fiéis para, representando seu Bartholomeu, pagar o pedágio pro Céu. Mesmo sem minha roupa de Spider, eu tinha de usar alguns de meus poderes para tirar o velho daquela situação. Sem perder tempo, coloquei minha mão direita na maçaneta, a perna esquerda na parede ao lado da porta e, com toda minha força descomunal, puxei de uma vez. Como mencionei anteriormente, aquele esboço de avião foi “construído” nas coxas, logo, é dispensável dizer que as peças não eram da melhor qualidade. Portanto, com meu movimento de puxar com tudo, a maçaneta veio junto, e nós (maçaneta e eu) formos parar na cabine da tripulação. No meio do caminho, encontramos a aerovelha, que tentou me segurar e veio com a gente. Depois de se recuperar do impacto, o negão que pilotava (que foi apresentado como comandante Tião), conseguiu sair de dentro do painel e, com a destreza de antes. voltar a guiar a aeronave. Com a ajuda dos co-pilotos, consegui tirar a maçaneta da boca da aerovelha que, lamentavelmente, perdeu os seis dentes que restavam. Após salvar a simpática senhora, parti veloz para resgatar seu Bartholomeu. Em frente ao banheiro, doutor Mento de Assis, o médico mais conceituado de Quissamanduca, sentenciou: “Pelo tempo que tá lá dentro, o velho já era!”. Realmente eu não podia esperar mais. Dei alguns passos para trás e parti feroz para um golpe de artes marciais que aprendi com meu mestre e guru Chim-Pan-Zé. Varejei a porta, meti os córneos na caixa da descarga e caí de costas em cima de seu Bartholomeu. Ao reparar o coroa imóvel embaixo de mim, pensei no ato que fosse tarde demais. Desesperado, peguei o rosto de seu Barthô e tentei reanimá-lo dando umas tapas na orelha. De repente, o olho direito do velho se abre trêmulo e ele, num esforço hercúleo, suplica pausadamente: pe-lo a-mor de De-ussss (pausa longa)! Me ti-ra da-qui! A missão de um super-herói é árdua e penosa, não pode haver obstáculos que impeçam a salvação de uma pessoa em perigo, nem mesmo aquele cheiro desgraçado que sufocava até a alma, doida pra se desprender do corpo e vazar daquele banheiro maldito. Coloquei o velho no colo e, dando um grito que mesclava esforço e desespero, me impulsionei para fora, para delírio dos passageiros que vibraram ao perceber que seu Bartholomeu estava vivo. Após o salvamento, o banheiro foi definitivamente interditado, com um saco preto tampando o rombo na porta deixado por mim.

A viagem parecia voltar ao normal, quando a aerovelha anunciou que o jantar seria servido. Já refeito dos minutos intermináveis vividos dentro daquele banheiro do inferno (fiquei meia-hora no balão de oxigênio), encarei a notícia sobre o rango como uma ótima, pois eu estava mesmo cheio de fome. O carrinho foi passando, e cada passageiro pegando seu prato, até chegar minha vez e, simultaneamente, a de Tunim, sentado ao meu lado. Recebemos nossos pratos de alumínio e, ao retirar a tampa, vi que era sopa. O desafio agora seria tomar sopa em um avião que parecia um ancião com Mal de Parkson, de tanto que tremia.

Enquanto eu arquitetava um plano para encarar a janta, Tunin se mostrava totalmente refeito da “ligeira” indisposição intestinal, pois, sem a menor cerimônia, colocou o prato na boca e, de uma vez, virou toda a sopa pra dentro. Antes mesmo que a aerovelha conseguisse empurrar o carrinho para oferecer a refeição para o passageiro sentado à nossa frente, aquele mamute do mangue pegou mais seis pratos e empilhou em seu colo. Admito que aquela sequência de prato a prato sendo bebido em questão se segundos foi impressionante. Eu nem havia pego minha colher e Tunin já se fartara com os sete pratos de sopa de cebola acompanhada com rodelas de pimentões. Naquele instante aprendi uma lição para a vida inteira. Percebi que até um ser retardado como Tunin Podridão é capaz de ensinar algo. Explico: ao utilizar sua “técnica”, Tunin foi o único que conseguiu tomar a sopa. O avião sacudia tanto, que foi realmente impossível que qualquer um de nós normais (ou quase) pudesse abocanhar uma colherada sequer. Seu Bartholomeu, coitado, tinha sopa na testa, nas sobrancelhas, nos cabelos, no pescoço, mas pra dentro, nada.

E o avião chacoalhava, a sopa na pança de Tunin também, e mais uma lição aprendi em seguida, agora de efeito bélico: ao misturar cebola e pimentão em uma sopa e agitar tal combinação em um recipiente como a barriga daquele animal, cria-se uma munição devastadora, capaz de transformar os armamentos mais pesados dos traficantes dos morros do Rio em brinquedinho de criança. Consegui ver bem o momento em que o arroto foi se formando. Um barulho como o de uma descarga sem água e o olhar perdido de Tunin eram a certeza de que algo extraordinário estava por acontecer. Mas antes, é necessário lembrar a todos a definição literal da palavra arroto: “erupção ruidosa de gases advindos do estômago”. Minha gente, ao abrir a boca, aquele filho do cão produziu o som mais terrível que ouvi na vida. Além de assustadoramente alto (quebrou pelo menos umas dez janelas do avião), o arroto foi impressionantemente longo (por baixo, um minuto). Mas o mais aterrorizante foi a rodela de pimentão que partiu das entranhas de Podridão. Como os movimentos sincronizados que os espectadores fazem acompanhando a bolinha durante uma partida de tênis, todos os passageiros daquele avião do inferno seguiram com os olhos a trajetória do projétil catapultado da boca de Tunin Podridão. O tempo parecia em slow motion. Assustados, todos acompanhavam dramaticamente (me lembro bem de uma pobre vozinha abraçando os netinhos de olhos arregalados). A viagem do legume voador só terminou quando se chocou violentamente com a parede que protegia a cabine dos tripulantes. O desfecho foi ainda mais impressionante: a rodela do pimentão grudada na parede e já em adiantado estado de putrefação. Após aquele momento interminável, as reações foram as mais diversas. Enquanto uns choravam desesperados, outros aplaudiam aliviados por ainda estarem vivos.  Em seguida, mais um co-piloto entrou em ação. Agora para tentar retirar a rodela de pimentão da parede. A bicha tava grudada, e o bravo tripulante, munido de uma espátula e um martelo, conseguiu, após muito sacrifício, concluir sua missão, porém levando junto um bom pedaço da parede.

Graças a Deus, este foi o último momento dramático que vivemos naquela viagem, que terminaria em poucos minutos, pois já estávamos bem próximo de nosso destino final, o aeroporto Santo Abílio da Moringa, em Piriri do Pororó. Mas antes que aterrissássemos, no entanto, Frei Natanael, sempre zeloso ao sacerdócio, protagonizou um belo instante ecumênico. Equipado com uma bacia cheia d’água e uma toalha, rebatizou nosso herói, que daquele dia em diante passou a ser chamado de Tunin Vulcão.

Capítulo 24 - Viagem Inesquecível (parte 1)



Aos meus queridos admiradores e seguidores, gostaria de registrar, antes de retomar a detalhada narrativa de minha saga de herói, que, apesar de meus poderes espetaculares e minha irresistível sensualidade, sou uma pessoa praticamente normal, portanto com certas inseguranças inerentes ao ser humano. E é justamente a uma delas que reservo o capítulo de hoje, o 24, o qual homenageio um antigo colega da imbatível Liga da Justiça, o Batman, que era carinhosamente por nós chamado de Morcega Danada.

Como mencionei na introdução, alguns receios fazem parte da característica humana, e não vejo problema algum revelar um trauma que adquiri quando vivia em Quissamanduca e ainda não era o mundialmente conhecido e desejado Spider-Man: voar de avião.

Antes que alguns de vocês me julguem precipitadamente, revelarei os terríveis motivos que tornaram esse importante meio de transporte impossível de ser agora utilizado por minha pessoa.

Como sabem, Quissa era uma cidade pequena e com algumas dificuldades, porém com o orgulho de possuir um aeroporto, obra do então prefeito Gumercindo Pangaré (o anterior, Cornildo Manso, que estava no poder havia mais de vinte anos, renunciou após denúncias de seu envolvimento no escândalo do superfaturamento na exportação de calangos para o Sudão Setentrional). O respeitado político, que era dono de uma boate erótica muito concorrida, a Boketis, sabia que a benfeitoria de nada adiantaria se não houvesse também um avião para atender nossa exigente população. Sendo assim, ele mandou construir uma aeronave para fazer a escala Quissamanduca-Piriri do Pororó, mais próxima cidade que possuía uma pista para aterrissagem (na realidade um campo de terra batida onde a molecada jogava sua bolinha). A inauguração de nosso aeroporto precisava ser um evento de grandes proporções e, para tal, Gumercindo Pangaré convocou todos os moradores para participar. Buscando prestigiar os quissamanduquenses, Pangaré decidiu sortear 49 passagens de ida e volta, o que criaria igual número de contemplados para integrarem o primeiro voo no Aeroporto Internacional Seu Carlinhos, nome dado em homenagem ao dono do ferro velho da cidade e responsável pela construção e retífica do referido avião. Aliás, avião não seria bem o termo adequado para definir a peça, mas isso veremos daqui a pouquinho.

Bem, para tornar o mais justo possível o sorteio das passagens, o prefeito oficializou um bingo, e os quarenta e nove primeiros a completar as cartelas seriam os agraciados, juntando-se aos onze convidados especiais: o próprio Pangaré, sua esposa, as três filhas, seu gato Borrão, a empregada Valdirene (uma mulata espetacular que as más línguas diziam ser amante do mandatário), Frei Natanael, Pai Dondinho do Balacubaco (o prefeito se dizia católico, mas toda segunda, quarta e sexta batia tambor no terreiro do Bala), Decinho (tataraneto de Décio Pinto Aquino Rego, o Visconde do Piriri do Pororó) e seu Carlinhos. A cada cartela completada, um verdadeiro alvoroço surgia para comemorar a vitória do sortudo premiado. Para a minha ingênua felicidade, fui o 34º a completar e, após o anúncio, erguido em triunfo pela multidão que se espremia na Praça Apolônio III. Após quatro horas de acirrada disputa, finalmente foram conhecidos os 49, e eu, infelizmente, estava entre eles.

Os vencedores receberam seus bilhetes devidamente numerados e se enfileiraram diante de um gigantesco pano preto que escondia a aeronave que inauguraria o Aeroporto Internacional Seu Carlinhos. Após a execução do Hino Nacional pela briosa banda da cidade, a primeira dama, dona Petrina Pangaré, cortou o laço e o imenso pano preto caiu, dando-nos a visão do objeto que iria nos transportar pelo céu. No primeiro instante, o que se ouviu foi uma absoluta reação de espanto: Ooooooohhhhhh!!!!!!!!! Logo em seguida, no entanto, a sensação causada pelo semblante reluzente do avião passou a ser outra: Iiiiiiihhhhhhh!!!!! As janelas pareciam as de ônibus urbano, as laterais também, assim como toda a fuselagem. Era como se dois ônibus tivessem sido juntados e recebidos os reforços de uma grande asa quase no centro, com mais uma menor na parte posterior. Próximo à cabine do piloto havia a imagem de um calango alado com os dizeres “Deus me Guia” e logo abaixo da asinha de trás, a identificação da aeronave: 171. Das quarenta e nove pessoas “agraciadas” com as passagens, mais da metade quis desistir da viagem, inclusive eu. Atento à reação, Gumercindo Pangaré rapidamente pegou o microfone, mas levou um choque tão grande que arremessou o equipamento longe, acertando a última janela do avião. O buraco resultante do impacto permitia a passagem de uma baleia orca. Na mesma hora, Pangaré usou toda sua autoridade como principal dirigente da cidade e ordenou: “Seu Carlinhos, dá um jeito nisso!”. O empresário (vamos chamá-lo assim) foi ao seu empreendimento e retornou em seguida com um rolo de fita isolante e os classificados do Jornal Quissa News. Acompanhado de seu ajudante Juruna (um indiozinho que passou a viver na cidade), seu Carlinhos subiu a escada armada por seu empregado (que a segurava firmemente), esticou o caderno de classificados do jornal e o fixou com a fita isolante em torno de toda a área da janela atingida. Após o serviço, desceu lentamente a escada e mandou pro prefeito: “Pronto! Agora é só mandar o povo entrar!”.

Depois dessa demonstração de perícia e habilidade de seu Carlinhos, pudemos ser apresentados à comissária de bordo, uma senhora que mal conseguia ficar em pé e devia ter, na boa, quase cem anos. Com o rosto coberto de pó de arroz, a velha abriu um sorriso e, sob forte esforço, convidou os passageiros a ingressarem na aeronave. Um a um, fomos subindo a escada que conduzia ao avião, o que já era um alerta do que estava por vir. A escada era de ferro e sacudia geral, parecendo que iria se decompor a qualquer instante. Consegui chegar ao último degrau e entreguei meu bilhete à comissária que, pela experiência e agilidade, certamente integrou a equipe do 14 Bis. Ao entrar no avião, não pude deixar de reparar que a cabine do piloto estava aberta. Foi quando vi um pôster do Vasco logo acima do painel e uma chupeta pendurada no espelho do retrovisor. Em fração de segundos, tentei imaginar a serventia daquele retrovisor, mas como não encontrava explicação plausível, resolvi buscar meu lugar e me acomodar na aeronave. Olhei para o salão e avistei duas colunas de bancos, iguaizinhos aos de um ônibus. Ao todo eram duas fileiras de um lado e outras duas do outro. Meu assento era o número 51, na janela, mas lá atrás, quase colado ao banheiro. Resoluto, segui em frente até encontrar meu lugar. Ao sentar, esbarrei um de meus pés em algo que estava no chão e então pude reparar se tratar de um penico com a seguinte instrução: “Favor não levar pra casa”. Estranhei aquele artefato e perguntei à aerovelha o objetivo daquilo. Para minha surpresa, ela me respondeu dizendo se tratar de uma alternativa para aqueles que preferissem não usar o banheiro. Confesso que achei graça e me perguntei quem em sã consciência preferiria um pinico a um banheiro. Minha ingenuidade, no entanto, estava com as horas contadas, pois logo eu saberia o quão eficaz seria aquele objeto de plástico. Ainda faltavam alguns passageiros quando, inadvertidamente, pude ver pela janela o piloto se aproximando da escada. Era um negão dono de uma barriga gigantesca e trajando uma camisa azul clara (com um rasgo de coisa de um palmo na altura da axila direita) e calça azul escura (esta com as pernas arregaçadas até as canelas). Devido à falta de um dos botões da camisa, dava pra ver o umbigo do sujeito, que mais parecia um olho. Com um jornal debaixo do suvaco arejado, o condutor da aeronave segurava uma laranja com a mão direita e chupava a bicha com uma voracidade que parecia comer até o bagaço.

Bem, quase todos estavam a bordo, faltando apenas dois lugares, um mais ou menos no meio e outro justamente ao meu lado (na janela com os classificados do Quissa News, ficou Joca Metralha, um gaguinho que trabalhava como atendente na Companhia Telefônica e depois foi ser meu visinho no Rio). Naquele instante, surge a visão de Rosemeire Maria, uma loirinha linda, certamente sonho de consumo de toda parte masculina que habitava a região. Meu coração disparou. Senti que o destino entrava em ação novamente e aquela viagem representaria o início de um romance avassalador. Minha virilidade se fez presente naquele momento, ainda mais pujante devido aos quatro sacos de amendoins com casca que tinha comido de café da manhã. Mas meu feeling foi pro brejo (e a virilidade idem) assim que Rosemeire conferiu o número do bilhete e se sentou na cadeira vaga no meio do recinto. Eu ainda me recuperava da decepção quando o local todo começou a balançar, fazendo parecer que estávamos num navio e não num avião. A luz apagava e acendia, e um fedor insuportável parecia vir de fora pra dentro, iniciando um clima de tensão e medo. De repente, da porta de entrada se impõe a razão de tamanho descontrole. E põe tamanho nisso: Tunim Podridão. Uma criatura de quase trezentos quilos que habitava (é, porque aquilo não podia morar em lugar nenhum) próximo ao lixão da cidade e por isso, e outras razões, era conhecido pelo inacreditável bodum que exalava de cada um dos miseráveis poros de seu corpo (as axilas, pescoço, pés e dobrinhas eram as regiões mais comprometidas). Sua fama atingiu proporções internacionais, a ponto de um grupo de quatro cientistas japoneses tentar fazer um estudo sobre ele, porém sem sucesso e retornar desfalcado imediatamente ao país do Sol Nascente pra nunca mais retornar à América do Sul. Explico: ao ser abordado pelos renomados estudiosos, Tunim ficou tenso e deixou escapar um punzinho de emoção, suficiente para terminar ali, e de forma trágica, a expedição. Professor Amassu Numuru desmaiou na hora e demorou oito dias para recobrar os sentidos, doutor Mijaru Namata pulou a janela e se jogou no precipício, pesquisador Miraru Nolhota sofreu um colapso emocional e vive em um manicômio em Tóquio e o quarto japa, o premiado cientista Kagaru Nascarssa, entrou em estado catatônico e até hoje não anda, não fala, não pisca e tem o olhar perdido em direção ao infinito. As características anti-higiênicas de Tunim Podridão também eram bem observadas em seus hábitos alimentares e comportamentais, o que o tornava ainda mais repugnante.

Bom, mas voltemos à viagem. Quando todos vimos a figura de Tunim surgindo, um princípio de pânico se instalou no avião. A indignação tomou conta do local, pois sabíamos que ele não participara do Bingo, e todos se perguntavam o que aquele hipopótamo podre estava fazendo ali. Naquele instante, o prefeito Gumercindo Pangaré se levantou e nos lembrou que se tratava de uma promessa que fizera durante sua campanha. Caso conseguisse dar à Quissamanduca seu primeiro avião, ele, em prova de gratidão a Deus, daria uma oportunidade de socialização a um cidadão excluído pela sociedade. Nesse momento, muitos se levantaram e começaram a linchar seu Carlinhos, responsável pela construção da aeronave (um dos mais exaltados entre os agressores era Frei Natanael). Depois da ação da turma do deixa-disso, todos voltaram suas atenções para a figura de Tunim. Foi exatamente nessa hora que me liguei que o único assento disponível era justamente o que estava ao meu lado. Um desespero absoluto começou a tomar conta de minha alma enquanto meus olhos se deparavam com a imagem daquela figura medonha vindo na minha direção. Após uns dez segundos de letargia, tentei fugir do local, mas era tarde demais. Podridão já estava em movimento de desabamento, ou melhor, de sentar, o que se efetivou em seguida. Bom, desnecessário dizer que, com o impacto do corpo daquela criatura, fui esmagado contra a lateral do avião. Meu rosto ficou grudado no vidro da janela e meu peito sobre meu braço direito, ambos colados, feito mata-borrão, na parede da aeronave. Meu braço esquerdo foi parar nas costas de Podridão que, simplesmente, não notou minha presença. Devido ao peso daquela carcaça contra o meu corpo, eu não podia respirar, muito menos pedir socorro, e o único som que conseguia emitir era um abafado grunhido desesperado por ajuda. Deus é bom demais, pois permitiu que eu ficasse naquela situação só por uma meia hora.

Quando consegui me recompor, ouvi um apito e em seguida um grito vindo da pista: “Pode subir!” Esse era o aviso de que a aeronave estava liberada pra decolar. Então, o motorista do avião (é, porque aquela pessoa não podia ser denominada de piloto) se dirige aos passageiros e manda: “Vamo nessa”. Em seguida, a aerovelha nos passou as recomendações, pedindo que “amarrássemos” os cintos de segurança. Busquei o tal cinto, mas o que encontrei foi uma corda presa à poltrona, que na realidade era um banco de ônibus. Daí o “amarrássemos” passou a fazer sentido. Logicamente, as instruções não eram estendidas a Tunim. Primeiro porque o tamanho da corda não era suficiente pra ele e segundo porque o peso daquele mamute por si só já o fixava na poltrona.

De repente, o avião começou a sacudir, parecia que ia desintegrar o puto, e a se mover lentamente. Aos poucos, foi ganhando velocidade, e à medida que avançava, mais sacudia. A situação, que já era crítica, ganhou contornos insustentáveis de dramaticidade quando, da cabine da tripulação, pudemos ouvir o coro: “Pai nosso, que estais no céu, santificado...”. A tripulação rezava, e forte. Aí eu senti que a barra tinha pesado de verdade. Enquanto o povo gritava dentro do avião, eu me lembrava da minha infância em Quissamanduca e pedia perdão a Deus pelas balinhas de flambuesa (flambuesa mesmo porque eram falsificadas) que todo dia eu roubava do Cantuária, um ceguinho que vendia guloseimas na porta da nossa escola. Era sempre a mesma coisa: um vinha por trás e arriava as calças do Cantuária, enquanto eu e outros amigos pegávamos as balas de flambuesa e saíamos correndo. A gente se divertia muito, Cantuária nem tanto. Paramos com isso no dia em que, depois de arriar as calças do baleiro, Zeca Ramujo resolveu enfiar um morteiro no rabo do Cantuária que, depois de dois dias de buscas, foi encontrado na cidade vizinha de São João da Caraia, no alto da igreja, abraçado ao sino.

Mas voltando ao avião, enquanto eu acompanhava a tripulação e os demais passageiros na oração, o bicho começou a subir. Na hora me lembrei também da Montanha Russa do Parque Derme, nosso parque temático em Quissamanduca. O povo gritava temendo o pior. Num ato de fé e altruísmo, Frei Natanael, mesmo amarrado em seu banco, ministrava, já pra garantir, uma extremaunção coletiva, inclusive em Pai Dondinho que, abraçado a uma imagem de São Jorge, chorava feito criança. Enquanto a gritaria tomava conta da aeronave, dava pra gente ouvir o piloto pelas caixas de som presas no teto: “Ah, moleque!!!!” Quis Deus que aquele busum alado desafiasse e vencesse todas as leis racionais (as irracionais também) da gravidade e realmente começasse a voar. Após o susto da decolagem, todos conseguimos nos acalmar e iniciar a viagem.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Capítulo 23: Um Domingo no Parque

A lembrança de Zoltan sendo linchado pelas crianças me fez recordar de Cleitoválter, filho de minha comadre Sebastiana, que era irmã da tia da avó da vizinha de seu Bionor Elha, um pacato velhinho que cuidava do maior puteiro de Quissamanduca, o Colossu Ruba. Cleitoválter era um menininho ruivinho, cheio de sardas, com carinha de anjo. Carinha, porque aquilo era o cão. O moleque foi expulso das três escolas que existiam em Quissa, sendo que chegou a sair algemado da primeira vez. E tinha só dois anos. Ele invadiu a sala da diretora da Escola Santa Eutanásia Malagueta, o estabelecimento de ensino mais tradicional da região, e tentou estuprar a madre superiora, freira Dolores, um velhinha de 89 anos. Após esse episódio rumoroso, Cleitoválter foi matriculado no Internato Dom Cabrito Numberra, mas permaneceu lá somente uma noite, pois no dia seguinte descobriram o cocô gigante que ele depositou sobre a mesa e, consequentemente, sobre a coleção de selos raros do diretor Olegário Borborema, que teve um ataque cardíaco e morreu ao ver o descomunal tolete repousando sobre seus amados selinhos. Concluindo a trajetória acadêmica, Cleitoválter foi conduzido (a expressão é essa mesma) ao Reformatório Saddam Hussein. Lá o moleque não teve vida boa e permaneceu por mais tempo: três dias. Numa áspera discussão com um interno, Clei se descontrolou: mordeu e arrancou um das orelhas do colega, sendo imediatamente expulso e deixando o local num camburão e ainda mascando a orelha. Essa breve apresentação faz-se necessária para que vocês, meus fãs queridos de todo o planeta, entendam meu desespero ao receber a ligação de minha comadre Sebastiana me pedindo para ficar com Cleitoválter durante o domingo, pois ela viria ao Rio para um batizado na Favela do Fubá Queimado, mas foi proibida por Nozão do Pó, chefe do tráfico local, de subir lá com o filho. A razão era simples, um ano antes eles passaram o feriado do Zumbi dos Palmares na comunidade e Cleitoválter tocou um terror, chegando ao ponto de fazer Nozão ter uma incontrolável crise de choro após ver Clei mijando num carregamento que acabara de chegar fresquinho da Bolívia. Outro motivo forte para que minha comadre não levasse o garoto era o temor de ele afogar o bebezinho na pia batismal. Isto posto, e sem alternativa, disse à comadre que, com a ajuda do Senhor, poderia sim ficar com Clei durante algumas horas.

E chegou o maldito domingo. Por volta das 13 horas, batem na porta do meu quarto, e meu coração quase parou. Então, pego uma medalhinha de São Francisco de Assis, aquele dos animais, faço uma breve prece ao santo e, segurando a medalhinha, caminho vagarosamente até a porta, talvez esperando ser fulminado por um raio e não ter de abri-la. Coloco a mão na maçaneta que, para tornar a tensão ainda maior, sai na minha mão. Trêmulo, consigo por a maçaneta no lugar e abro a porta bem devagar. Naquele instante teria início algumas das piores horas da minha gloriosa vida de herói. De súbito, levei um bico no saco. Após me ver cair, Cleitoválter entra correndo pelo quarto, pisando, antes, na minha cabeça. A dor absurda em minhas partes baixas e a falta de ar provocada pelo petardo que veio de baixo pra cima que me fez subir mais de um metro me fizeram imaginar que estava morrendo. Apenas como registro, após o impacto a medalhinha de São Francisco voou da minha mão e nunca mais a vi.

Enquanto eu tentava, ainda estirado no chão, voltar à vida, ouvi aquele moleque safado dizer que queria ir ao Mundo Encantado do Zé, o parque de diversões de Santa Cruz. Me apoiando na parede, eu me levantei e, com muito esforço pra falar, disse ao garoto: “Tudo bem, mas se você não se comportar lá, eu me mando!”. Ele aceitou o trato e, depois de mais um tempo me refazendo, fomos ao parque que ficava a uns cinco quarteirões da pensão do Vasco. Durante o caminho, Clei se distraía arremessando rebocos nos velhinhos que passavam, enquanto eu seguia meio à distância rezando um terço de Itu que ganhei numa rifa. Finalmente chegamos ao parque, que era realmente um espetáculo. Dentre as várias atrações, havia a Corrida Radical (as crianças entravam num caixote amarrado nuns jegues que saiam em disparada por um capinzal); o Trem Fantasma (um trenzinho que demorava meia hora pra percorrer um túnel se cinco metros repleto de monstros, caveiras e pôsteres da Elza Soares); Monga, a mulher Gorila (a moça que vestia a fantasia era uma das bilheteiras, reconheci pelo bafo); um leão de verdade (o bicho dava pena, era tão velho que a juba era branca e ele só tinha quatro dentes inteiros na boca); e a maior de todas as atrações, Demétrius, um equilibrista que, dizem, chegou a trabalhar num famoso circo da Espanha, mas como porteiro.

Logo ao chegarmos, Cleitoválter pediu um algodão doce, mas a onda dele não era comer a guloseima e sim pegar o pauzinho e sair espetando a bunda das mulheres. Ao ver o leão, que se chamava Osvaldo, Clei parou. Nesse momento, temi mesmo pelo futuro daquilo que um dia foi um animal selvagem. Cleitoválter foi se aproximando do leão que, magro que nem a porra, seguia olhando pro chão e não parava de chupar um punhado de capim que colocara na boca de manhã. Ao reparar que Clei estava a dois palmos de distância, o leão ergue a cabeça, olha pro garoto e lentamente abre a boca mostrando os quatro dentes (o quarto ficava lá atrás, mas dava pra ver) e o chumaço de capim na língua. O domador ainda previu o que estava por acontecer e, com a voz embargada, implorou a Cleitoválter: “Não faz isso não!”. Foi aí que, com a rapidez de um samurai, Clei dá uma tapa nos córneos do Leão. Realmente foi duro ver o bicho sair rolando pela direita, derrubar o domador e depois o biombo que servia de parede pro banheiro coletivo. A gritaria foi geral, um corre-corre danado. A cena da velhinha sentada no vaso e gritando que o mundo estava acabando não me sai da lembrança até hoje. Temendo que descobrissem que Clei fora o causador do tumulto, peguei o moleque pelo braço e saí correndo pra outra parte do parque. Antes eu tivesse ido embora. Paramos em frente à barraca de Demétrius, o equilibrista. Uma pequena multidão assistia quieta àquele cara alto, de bigode e enfiado num ridículo collant rosa e azul equilibrar com a cabeça um monte de copos cheio de água. Realmente era impressionante, tinha mais de cinquenta copos. E ainda havia um baixinho em cima de uma escada se preparando para colocar mais um. Minha clarividência de super herói me alertava naquele momento que algo terrível estava por acontecer, e imediatamente procurei Cleitoválter. Tarde demais. Aquele filho da p. já se preparava pra arremessar uma laranja parruda que ele achara no chão. Eu ainda gritei: “Nããããããooooo!!!!!!”. Mas foi em vão. O laranjão parecia um torpedo e foi direto na testa de Demétrius. A porrada foi tão grande, que a laranja voltou em sentido contrário e acertou a boca do palhaço, uma barraquinha que ficava na outra extremidade do parquinho. Com o impacto, antes de desmaiar, o equilibrista quase se afogou com tanta água que caiu sobre ele. Foi aí que, temendo que Cleitoválter demolisse inteiro o simpático Mundo Encantado do Zé, resolvi pegar o moleque e sair às pressas do local, devolvendo aquela criatura do inferno pra minha comadre, que já voltava do concorrido batizado.

Graças a Deus, essa foi a última visão material que tive desse moleque (em alguns pesadelos ele já deu o ar da graça algumas vezes). Informações não confirmadas dão conta de que Cleitoválter, hoje um rapaz, teria fugido de Quissamanduca, indo a pé até o Iraque e se tornado membro da TET, Trope de Elite Talibã.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Capítulo 22: Zoltan, o Mestre dos Mágicos

Bem, antes de iniciar mais uma capítulo da minha impressionante história, preciso revelar ao planeta o motivo que fez com que me ausentasse de meu blog por tanto tempo. Devido a um infortúnio, tive de deixar a cidade por alguns meses. Em uma das minhas diversas atividades comerciais (sempre topei qualquer parada pra arrumar algum), conheci uma moça muito bonita, chamada Leonor. Éramos colegas no salão de beleza Meson Futun. Ela trabalhava como manicure e eu exercia uma função indispensável para o bem estar físico e emocional de todos no local: trocava o papel higiênico do banheiro. Pois bem, com o passar do tempo, eu e Leonor vimos que éramos feitos um para o outro e iniciamos um tórrido romance. Porém, forças externas impediram que esse enredo tivesse o final desejado por nós dois. Na realidade, Leonor era amante de Carlão Navalhada, o banqueiro que comandava o jogo do bicho em toda a zona oeste. Para a minha infelicidade, o moço descobriu meu caso com Leonor. Alertado por meus amigos, fiquei sabendo que Carlão estava chegando à pensão do Vasco com a intenção de me capar. Felizmente, sempre tive o raciocínio rápido e imediatamente deixei a cidade, me instalando em uma tribo de índios no interior do Piauí (um amigo tinha uma oca alugada lá e me ofereceu abrigo). Para não correr nenhum risco de exposição desnecessária, e consequente possibilidade de ser encontrado por aquele contraventor malvado, me acomodei durante seis meses debaixo da cama (era um povo bem moderninho) de uma índia velha. Até hoje me lembro do nome daquela aborígene: a amável Teta Numbigo. Voltei à pensão do Vasco quando soube que Carlão, graças a Deus, havia morrido numa explosão causada por seu inimigo Capitão Furacão, agora o novo manda-chuva da área. Mesmo com Carlão fora de combate, não pude reencontrar Leonor, que após o enterro do bicheiro fugiu da cidade com o padre que encomendou o corpo. Tudo explicado, vamos voltar à minha saga.

Como mencionei, sempre tive de correr atrás para conseguir dinheiro e cuidar da minha sobrevivência. Apesar de ser um super-herói corajoso, invencível e lindo, eu não tinha um puto no bolso e precisava me virar, encarando o que viesse pela frente. Certo dia, estava lendo a parte dos classificados do jornal (seu Vasco sempre deixava um exemplar no banheiro da pensão) quando me deparei com um anúncio interessante. “Recruto super-heróis. Pago bem.”. Sentado no trono, eu anotei o endereço e, após desproduzir o almoço (naquele dia foi canja de galinha com farinha), segui direto para o local. Ao chegar, me deram um papelzinho com o número 6 e me mandaram para uma salinha, onde havia outros cinco caras. Tinha um Batman, um Capitão América, um Tarzan, um Papai Noel e um Chapolim Colorado. Após uma rápida analisada, vi que aqueles concorrentes não seriam páreo para mim. A barriga do Batman era uma vergonha. A roupa, que tinha na gola uma etiqueta velha da Mesbla (acho que faliu há mais de 20 anos) devia ser uns três tamanhos abaixo, tanto que o umbigo (estufado) parecia até um olho em alto relevo. O Tarzan, coitado, era o oposto, osso puro. O bicho era tão magro que foi dar um levantada pra pegar uma água e a tanga caiu. Já o Papai Noel só podia tá de sacanagem. Mas o Chapolim tinha estilo, só que chegou bêbado e tava dormindo no sofá. Deixei o Capitão América por último de propósito. Logo quando cheguei, vi que ele me olhou estranho, e veio logo falar comigo: “Nossa, Spider, amei sua sunga!”. Não gostei do comentário. Achei impertinente, mas fingi que não escutei. Mas o cara insistiu: “Uhm, deixa eu ver o tecido!”. Ao sentir a patolada, o sangue subiu. Dei-lhe uma tapa na orelha e o tempo fechou. O Papai Noel arremessou o saco na minha direção, mas acertou o Tarzan, que, com o impacto, atravessou a porta de vidro e foi parar dentro do elevador de serviço do prédio. Depois de dois minutos tentando se levantar (a barriga dificultava os movimentos), o Batman segurou o Capitão América, que lhe deu um beijo na boca. Rapidamente, os dois saíram de mãos dadas e foram embora. Enquanto eu dava umas porradas no Papai Noel, o Chapolim permanecia imóvel, deitado no sofá. Bêbado feito uma gambá, o cara roncava com a boca aberta e não viu o fuzuê. Com a confusão, entrou na sala um homem esquisito, baixinho, de cavanhaque e todo de preto. “Mas o que é isso?”, gritou. Com a roupa toda rasgada (quem mandou tacar o saco em mim? Não tive pena mesmo), o Papai Noel foi logo descartado pelo cara, que mandou dois funcionários do prédio carregarem o Chapolim pinguço (ele deixou o escritório dentro de um carrinho de mão) Como só sobrou eu, o homem se apresentou: “Muito bem, meu nome é Rudimilson. Coloquei o anúncio no jornal porque estou precisando de alguém que sirva de super-herói em festas infantis. Sou mágico e me apresento sozinho. Mas sinto que a criançada fica meio de saco cheio dos meus números, e quero diversificar. Gostei do seu estilo, e acho que você vai se dar bem nessa. O trabalho é moleza, você enche a pança e ainda te pago trinta pratas por evento. Tá dentro?”, perguntou o mágico. “Na falta de coisa melhor, respondi de pronto: “Começo quando?”. Rudimílson disse que no dia seguinte já teria uma festa, que prometia bombar. Era em Santíssimo, pra 200 pessoas. O aniversariante era um garoto chamado Jurandir e o pai resolveu gastar, alugando um salão de festas, quer dizer, um galpão de festas. Rudimilson marcou comigo no escritório para irmos juntos.

Cheguei no horário determinado e toquei a campainha. Quando a porta abriu, não me contive, tive um ataque de riso que durou mais de meia hora. Rudimilson, que tinha pouco mais de um metro e meio, estava vestido com uma roupa lilás, uma capa que era maior que ele e um turbante branco com uma pedra brilhante ao centro. Eu cheguei a ser demitido enquanto ria, mas readmitido em seguida, pois o mágico tinha de cumprir o acordo feito com o contratante e apresentar a atração da festa, o Spider-Man. Chegando ao estacionamento fomos em direção a um fusca que estava estacionado entre uma bicicleta e um velotrol (pra quem não lembra, era uma espécie de velocípede de plástico). Ainda sem conseguir parar de rir, entrei no automóvel e, pra tentar me distrair e manter meu emprego, peguei pra ler um folheto que estava no chão do fusca. Estava escrito “Zoltan, o Mestre dos Mágicos”. Não é preciso comentar que tive nova crise, desta vez chegando a chorar de tanto rir. Indignado com minha reação, Rudimilson, ou melhor, Zoltan, me ameaçava: “Se não parar agora, eu demito você depois da festa!”. Precisando muito daquele emprego, fiz valer uma técnica que aprendi com os monges do Convento dos Capuchinhos Alienígenas. O procedimento era simples: para cessar imediatamente um incontrolável acesso de riso é necessário tão somente se concentrar em algo horrível. Imediatamente, voltei no tempo em que fiquei escondido embaixo da cama de Teta Numbigo e via, de uma posição privilegiada, aquela índia velha pelada todos os dias. Bem, depois de ficarmos presos num trânsito infernal (uma das ruas próximas estava interditada por causa de uma feira, chegamos ao local da festa. O evento realmente prometia. Ao entrarmos, fomos recepcionados pelas crianças que, excitadas com nossa chegada, pularam em cima da gente e nos derrubaram com tapas e bicos de todas as formas (tinha um miserável de um gordinho que mandava ver com uma ripa de madeira). Depois de uns 15 minutos tentando sair daquela sessão de espancamento, finalmente consegui me libertar e correr em direção à mesa do bolo. Foi aí que tomei conta da festa No desespero de me salvar do linchamento, corri tão rápido que não vi um dos garçons. O impacto foi inevitável, o que fez com que a bandeja com refrigerantes voasse alto em direção a uma mesa com oito senhoras, cuja mais novinha devia ter uns 85 anos. A bandeja de alumínio girava e se aproximava velozmente da testa de uma das velhas. Porém, em um reflexo que somente os super-heróis de verdade possuem, joguei minhas teias em direção ao objeto voador, que parou a um palmo dos córneos da coroa. Naquela instante, todos no recinto exclamaram: “Oooooohhhhhhhhhhh!!!!”. Aplaudido freneticamente pela multidão, agradeci o carinho e encaminhei na direção da mesa daquelas idosas para me certificar se estavam todas ok. “As vovós estão bem?”. Para meu espanto, nenhuma das oito acompanhou o ocorrido, e seguiam animadas numa disputada partida de bingo. Ao me ver chegando, um delas se pronunciou: “Meninas, o garçom chegou! Eu quero um chops! Eu quero um chops!!!”. Aliviado por estarem todas inteiras (ou quase), fui caminhando pra lateral do galpão, quando me toquei que não avistava Zoltan. Me aproximei do pai do aniversariante e perguntei onde estava o mágico. “Ah, ele está brincando com as crianças. Ele é muito bom!”. Foi nessa hora que reparei um tumulto do lado oposto de onde eu estava. Disfarçadamente (peguei emprestado uma revista e fingi que estava lendo) cheguei perto e pude ver o que ocorria. Todo pintado de verde e cheio de espuma, Rudimilson foi pendurado em um varal e servia de mira pros moleques que arremessavam tudo que tinham nas mãos (lembram do gordinho? Pois bem, esse chegou a tacar uma cadeira!). Exatamente naquele instante, um dos molequinhos gritou: “Cadê o Spider! Agora é a vez dele!”. A percepção de um herói tem de ser aguçada, isso nos faz diferentes das pessoas comuns. Senti que era o momento de deixar o local e, cortando caminho pela cozinha improvisada, deixei correndo o galpão e, mais uma vez, escapei com denodo das garras de malfeitores sanguinários, o que me permite estar aqui e ser esta lenda viva para a humanidade.

domingo, 17 de agosto de 2008

Capítulo 21: A Primeira Aparição de Spider na TV

A explosão de Valdemar do Gás fez com que a popularidade do Spider ficasse um tanto quanto abalada. Sendo assim, procurei os serviços de um assessor de imprensa para cuidar da reparação da imagem do herói. Como não podia revelar minha identidade secreta, tive de fazer uma busca pela internet, pois só assim eu poderia encontrar alguém de relevo sem me expor. Encontrei um cara chamado Romualdo Panzilão, que dizia ser capaz de recuperar qualquer carreira em declínio, fazer qualquer um se tornar rei em popularidade, a ponto de tornar Hitler síndico de um condomínio formado por negros e judeus. Pensei na hora: “É esse!”.
Liguei para o assessor e marquei um encontro. Buscando privacidade, escolhi um local reservado para a reunião e, claro, fui como Spider. Na hora combinada, Panzilão chegou ao restaurante de comida chinesa, o Ma Fu A, um self-service você mesmo. Trajando um terno abacate, sutilmente combinando com uma gravata laranja (ilustrada com personagens da turma do Pernalonga), o profissional se apresentou e foi logo dizendo: “É, meu camarada, teremos um longo trabalho pela frente. A lambança foi grande e seu filme queimou geral!”. Achei a sinceridade um pouco inoportuna, mas resolvi dar um crédito. Perguntei qual seria o primeiro passo e ele me disse que eu deveria aparecer na mídia, e me aconselhou: Spider, tenho uma idéia que fará você recuperar sua credibilidade. Será uma bela oportunidade de mostrar que, apesar de tudo, você também é gente!”. Igualmente, não gostei do fim do comentário, porém decidi encarar e pedi que continuasse. “Tenho o programa ideal pra você ir” É o Samba Show!”. Surpreso, perguntei ao assessor: “Cara, alguém vê isso?”. Mostrando-se ofendido, Panzilão disparou: “É por isso que você tá nessa draga desgraçada. Não sabe nada! Samba Show é um programa do povo, e será uma forma de você provar o lado simples do herói!”. Depois da explanação convincente do meu assessor de imprensa, resolvi aceitar e topar o desafio.
Devidamente vestido de Spider, cheguei à emissora e fiquei aguardando ser chamado para o programa. Na sala de espera, que mais parecia um quarto de tão pequeno, estávamos eu, uma rapaziada com alguns instrumentos de percussão, uma loiraça, uma moça negra bem gorda que lembrava muito a cozinheira da pensão do Vasco, um cara metido a bonitão, um coroa com uma pinta de tarado; e um neguinho magrinho. Em um dado momento, uma mulher chegou correndo e gritou pra gente:”É pra entrar! É pra entrar! Entra logo, porra! Começamos a correr em direção a um corredor que daria no estúdio. Na ânsia de entrar primeiro, a loira boazuda deu em chega pra lá na gordona, que saiu catando cavaco até derrubar um câmera man e o equipamento (um paraíba que estava em um andaime segurando uns cabos veio junto). Refeito do susto que o fez zunir o microfone e se jogar na platéia (12 pessoas), o apresentador, um tal de Jabbá, ajudou a gorda a se levantar e a apresentou ao público: “Quero palmas pra dona Orlandina de Morais, um baluarte do nosso samba!” Após ajeitar a saia, que subiu até o pescoço (a lamentável visão me perseguiu durante meses), a veterana sambista sentou-se à mesa que estava preparada para receber também os demais convidados. Aos poucos, fomos apresentados e nos acomodando. A loira era Rita Cavanhaque, modelo e a atriz que aguardava convite para um novo trabalho (o último tinha sido o pornô “A Princesa e o Jumento”); o bonitão era Roberto Abílio, galã da Rede Vida (protagonista das novelas Tormenta de Uma Paixão e Diário de um Corno); o velho era o doutor Felipe Nistorto, autor do premiado livro de bolso Posições Sexuais para Anões; enquanto o filé de borboleta era o MC Ferrô, autor do funk da Mulher Banana. Como a mesa só tinha lugar pra seis, o grupo de pagode Suvaco do Tigre ficou em pé, ao lado do bar.
Bem, é importante ressaltar que o ar condicionado estava quebrado e o calor naquele lugar era infernal. Com o samba rolando solto, o programa seguia. Nós, os convidados, éramos servidos por um garçom, que a todo instante nos trazia salgadinhos e cerveja temperatura ambiente (o anunciante Cervatecatá doava os engradados). Tudo caminhava razoavelmente bem até eu ter a infeliz idéia de experimentar a empadinha. O Roberto Abílio ainda me avisou: “Vai não!” Sem dar atenção ao conselho, coloquei na boca o salgado e comecei a mastigar. Resolvi beber um gole da cerveja pra dar uma facilitada no processo. Depois de uns oito minutos tentando engolir, eu comecei a perder o ar. Foi aí que, inadvertidamente, o apresentador anunciou: “E aí Spider, e os projetos? Diz alguma coisa! Só se for agora!”. Neste instante, todas as câmeras se voltaram para mim à espera de uma resposta. Com a boca entupida e sem conseguir respirar, só me restou abraçar o apresentador e olhá-lo nos olhos. Felizmente, ele percebeu que eu não me encontrava muito bem e contornou a situação: “Bem, vejo que nosso herói está um pouco emocionado! Depois eu volto com você, Spider! Só se for agora!”.
Consegui me sentar e, ao bater a bunda na cadeira de ferro, consegui, com a ajuda do Senhor, engolir a maçaroca. Aliviado, avisei ao contra-regra que precisava ir ao banheiro lavar o rosto (minha máscara estava toda babada), e fui saindo de gatinho para que as câmeras não me filmassem. No entanto, não consegui me limpar, pois ao abrir a porta do banheiro dei de cara com a dona Orlandina sentada no vaso. Paralisado com a visão do inferno, ouvi a veterana sambista me confidenciar: “Exagerei nos cocrete!”.
Em estado de choque, voltei para o estúdio e sentei novamente à mesa. Sem alternativas, busquei me descontrair com o sambão que estava rolando. Ao olhar pro sexólogo, saquei que ele não parava de manjar as pernas de Rita Cavanhaque, que lutava ferozmente para tirar um osso de coxinha que insistia em permanecer entre os seus dentes. Aquilo me deu um arrepio e tentei me distrair comendo um rissole que sobrara no prato. Após finalizar o salgadinho, fiquei sem saber o que fazer com o caroço da azeitona. Neste instante, me lembrei da minha infância em Quissamanduca, época em que eu era o rei do peteleco. Então, não tive dúvidas: coloquei o caroço na mesa, preparei o dedo, mirei no corredor e mandei bala. Mas o tempo de criança passou e eu não era mais o mesmo. Sem a prática de antes, errei a direção e acertei em cheio a testa do apresentador. A porrada foi tão forte, que derrubou o cara. Ele se levantou com a ajuda das sambates (as mulatas que dançavam no programa) e, injuriado, bradou: “Porra, isso é sacanagem! Quem foi o safado?” Um silêncio tomou conta do local. Daí, um cara gritou: “Chama os comerciais!”. Durante as propagandas, Jabbá foi consolado por uma assessora e se acalmou um pouco. Com a marca da caroçada na testa, o apresentador retomou as rédeas do programa.
Mais relaxado, e meio calibrado pela Cervatecatá quente, fui entrando no clima e já estava me engraçando com uma das sambetes. Aí, Jabbá veio novamente: “Spider tá no clima! Agora, Valeska Jamelão vai fazer um show pra ele! Vem cá, minha deusa! Só se for agora!” E de trás das sambetes veio surgindo uma mulataça espetacular, de uns dois metros de altura. Ela veio gingando e me manjando. Chegou na minha frente, virou de costas e começou a rebolar freneticamente. Hipnotizado pela buzanfa descomunal, tive de me segurar na mesa para não cair (a roupa colada tava entregando meu estado). Nessa hora, o MC Ferrô mandou: “Tá dando bandeira, Spider! Vai que é tua, Taffarel!” Foi aí que Valeskão virou de frente e abriu os braços. O que aconteceu a seguir foi indescritível. Sem que eu pudesse esperar, o doutor Felipe colocou um dos seus pés na minha bunda e me empurrou em direção da mulata. A moça, que estava sambando direto a umas três horas, chegava a brilhar (me lembro de ter visto meu reflexo na barriga dela), ampliou o sorriso e sussurrou: “Vem, garoto!”. A última cena que me lembro foi do momento exato em que ela me abraçou. Como ela era bem mais alta que eu, meu rosto foi direto para perto de um dos seios e o nariz acabou colado na axila direita. Eu me recordo bem que, neste instante, me veio à mente o nome do grupo de pagode. Essas foram as últimas lembranças do Samba Show. Quando recobrei os sentidos, estava tomando soro em um posto de saúde. Meu assessor me disse que, após meu desmaio, dois seguranças entraram em cena e me arrastaram para um depósito, que eles chamavam de camarim. Como eu não dizia coisa com coisa, Panzilão achou por bem me levar a um hospital. Felizmente, o soro fez efeito rápido (em pouco mais de dez horas eu já tinha voltado à vida) e pude retornar pra casa. Sinceramente, nem me preocupava mais com minha imagem. O que importava pra mim e que, mais uma vez, eu vencera novo perigo e estava vivo.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Capítulo 20: Nota Triste de uma Trajetória Gloriosa

Nem só de momentos vitoriosos é ilustrada a história de um super-herói. Algumas vezes, a coragem desmedida e a vontade de salvar uma pessoa indefesa não são suficientes para o sucesso de uma missão. Como estou relatando momentos marcantes da minha história, chegou a hora de, com pesar, revelar-lhes um episódio lamentável, que marcou por longo tempo as vidas da população de Santa Cruz.
Em uma bela tarde de domingo, quando as ruas do bairro estavam repletas em função do estonteante sol que cobria toda a zona oeste carioca, estava eu solitário em meus aposentos na pensão do Vasco jogando par ou ímpar (treinava para uma eventualidade) quando Manuel Stalone, o segurança da rua, entrou na recepção aos berros: “Meu Deus, o Valdemar subiu! O Valdemar subiu!”. Sem ter idéia do que se passava, me preparei para descer correndo as escadas (na pressa de chegar, pisei em um carrinho de brinquedo que estava próximo ao primeiro degrau e saí rolando até onde estava a rapaziada) e me encontrei com o pessoal, que se assustou um pouco com o esporro de quando derrubei a mesa do porteiro (ele foi parar abraçado comigo no chão). Após ajudar Severino a encontrar os óculos (voaram longe após o impacto), fiquei sabendo do que se passava com Valdemar do Gás, um português que há muito tempo morava na área e, desde sua adolescência, sofria com uma infernal prisão de ventre. Sua amada esposa, dona Emengarda Quitéria, revelara que o marido vivia um verdadeiro inferno (o pobre não soltava um mísero punzinho havia mais de 15 anos). Então, o acúmulo de gases nas entranhas fez a barriga do patrício inchar tanto que ele decolou feito um balão de festa infantil.
O desespero tomou conta de todos, preocupados com o paradeiro de Valdemar. O prestimoso Stalone veio correndo avisar que o português, sagaz como ele só, conseguira se agarrar em uma parte da estátua de dom Juan González De La Pemba, colonizador peruano e primeiro habitante de Santa Cruz (o sobrenome do histórico personagem foi uma homenagem dos índios, que o rebatizaram após o verem nu pela primeira vez). Não há necessidade de revelar que, para evitar uma viagem indesejável a Júpter, Valdemar abraçou a genitália da réplica de dom Juan. O monumento (a estátua) ficava na praça, e uma verdadeira multidão acompanhava, apreensiva, o drama do imigrante luso. Ao imaginar a agonia daquele infeliz, subi rapidamente até meu quarto, vesti minha roupa de Spider e parti para o evento, quer dizer acontecimento. Ao chegar, fui recebido com aplausos pela população, que pedia para que eu salvasse o coitado.
Eu tinha de agir imediatamente, pois Valdemar, já sem forças, não conseguia mais manter aquela peça roliça entre as mãos, e gritava desesperadamente: “Ai, Jesus!. Comovido, imediatamente lancei minhas teias e parti feroz para o braço esquerdo da estátua. Minha ação teria de ser rápida e precisa, pois um movimento em falso faria Valdemar seguir rumo à Via Láctea. Joguei minha teia em direção ao chafariz do parquinho e, tal como o Tarzan, segui de encontro ao português. Consegui agarrá-lo e, com muita técnica, coloquei-o deitado no chão, de barriga para cima.
Antes que o povo chegasse para me aclamar, prendi o galego no banco da praça e saltei rumo à marquise do prédio mais próximo a fim de que eu pudesse me retirar do local em grande estilo. Porém foi aí, meus amigos, que se deu a tragédia, inesquecível para a população de Santa Cruz. Ao voar para a glória, eu nem imaginava o que o destino me reservara: o buraquinho que ejeta teias entupiu e eu despenquei de uma altura de doze andares. Meus olhos tiveram poucos instantes para observar que o impacto seria justamente contra a barriga gigante de Valdemar do Gás. O que ocorreu a seguir foi uma desgraça tamanha, que ainda me emociono até hoje. Ao me chocar com aquele tonel, uma explosão ecoou por toda a região (deu no Jornal Nacional que o barulho foi ouvido no norte de Goiás). Os gases acumulados durante anos na barriga do português escaparam naquele momento. Era gente correndo pra todos os lados. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos procuravam, em vão, se proteger do peido atômico disparado pelo coitado (até Gumercindo Piquet, um pedinte que só andava por meio de uma cadeira de rodas, largou seu meio de transporte e partiu correndo rumo ao desconhecido).
Santa Cruz só voltou ao normal seis meses depois, quando começou a fazer efeito a composição química lançada pela força conjunta, formada pelos bravos bombeiros da Defesa Civil e os integrantes da SWAT, que interditaram a zona oeste do Rio até que a combinação de amônia/creolina/água sanitária/criptonita substituísse o futum desgraçado que tomou conta da Cidade Maravilhosa.
É importante ressaltar que aquela foi a última vez em que o Spider agiu no bairro, pois a população, ressentida com o episódio, queria linchar o glorioso herói que, vítima do destino, acabou sendo o responsável por toda aquela desgraça.