sexta-feira, 17 de maio de 2013

Capítulo 25 - Viagem Inesquecível (parte 2)


Guiando um carrinho de supermercado, a aerovelha passava de banco em banco para oferecer o lanche, que era um pão com ovo, um copo de refresco de caju (quente) e uma mariola pra sobremesa. Ao chegar na vez de Tunim Podridão, o paquiderme, guloso que nem a porra, pegou logo oito pães e já saiu matando. Eu peguei o meu kit e também tratei de comer logo antes que Podridão transformasse meu pãozinho com ovo em presa. Depois de lanchar, resolvi ir até a tripulação pra tirar umas dúvidas sobre o trajeto. Quando abri a porta da cabine, vi o negão pilotando só com o braço direito, porque o esquerdo tava pra fora da janela, com sua mão segurando um cigarro. Os dois assistentes disputavam uma animada partida de purrinha (palitinho, dependendo da região). Nada disso, porém, me impressionou mais do que a imagem que vi sobre painel de controle: uma garrafa aberta de cachaça (a Fogo no Rabo)...praticamente vazia. Instintivamente, olhei em direção ao retrovisor que tanto estranhei no início e pude ver o olhar perdido do piloto: os olhos do negão eram duas bilhas tão vermelhas que parecia ter usado groselha como colírio. Bem, claro que depois disso só me restou voltar para o meu lugar e chorar muito, pois realmente senti que o fim estava próximo.

Depois de uns cinco minutos de um pranto que parecia incontrolável percebi que as emoções estavam só começando, pois ouço a voz de Tunim: “Cocô! Tunim qué cocô!”. Apesar de atordoado com o desfecho iminente, eu não estava surdo. Aquela criatura queria cagar e, pela expressão contraída, seria ali mesmo. Lembrei dos oito pães com ovo abatidos e, logo após o grito desesperado que dei, agarrei a cabeça de Podridão e, olhando bem dentro de seus olhos, supliquei: “Não, Tunim! Cocô, banheiro! Cocô, banheiro!” Graças ao bom Deus, Podridão teve piedade de nossas almas e se levantou, caminhando lentamente em direção ao toalete. Bom, acho que não preciso dizer que ele teve de entrar de ré, pois, por ser literalmente maior que a casinha, não teria como se virar caso entrasse de frente. A cena de Podridão sentando no vaso antes de fechar a porta foi a certeza de que a vida não tinha mais sentido pra mim. Acomodado em meu banco, olhei a corda de segurança e pensei em me enforcar, mas um cheiro inacreditável passou a tomar conta do ambiente e me desconcentrou. Percebi que, após aqueles vinte minutos que pareceram vinte segundos, Podridão caminhava de volta à poltrona, enquanto uma correria louca acontecia nos últimos lugares, deixando deserta a parte próxima ao banheiro. O ocorrido foi que aquele desgraçado despejou o que restou dos pães com ovo, dos copos de refresco quente de caju e das dezenas de mariolas no vaso sanitário, tudo em forma de merda. Os poucos segundos de porta aberta para Podridão sair do banheiro já foram suficientes para instalar o caos na aeronave. Para completar aquele cenário de sucursal do inferno, o avião não tinha ar condicionado e sim um ventilador de teto que não dava vazão. Foram novos momentos de pânico, que levaram o Bispo Juvenal (criador da Igreja Universal do Juvenal) a sugerir um suicídio coletivo. Os interessados colocariam cinquentinha num envelope pras despesas do translado da alma pro céu. Graças a Deus, um dos co-pilotos apareceu correndo com um lança-chamas e desinfetou o local com jatos de desodorante Avanço.

Dispensável dizer que, após os trabalhos intensos de Podridão, o banheiro do avião estava interditado para todo o sempre, passando a fazer sentido os penicos que integravam o kit-viagem. A aerovelha comunicou a todos que seria impossível usar a casinha devido ao estado lamentável deixado por Podridão. Eu imaginava que, após o aviso, ninguém corresse mais riscos, mas em um dado momento pude ver Bartholomeu Bonifácio, no alto de seus 132 anos, caminhando lentamente, porém determinado, em direção ao banheiro. Seu Bartholomeu era uma figura lendária em Quissamanduca, amigo de personagens ilustres da história do Brasil. Nascido em Portugal, veio ainda criança para o Rio de Janeiro. Aliás, Bartholomeu não é o nome verdadeiro do velho. Seu pai era um militante radical do partido comunista em Lisboa e resolveu registrá-lo como Bartholonosso, que dava um ar mais socialista. No entanto, com dois dias na Cidade Maravilhosa o nome verdadeiro caiu, e Bartholonosso passou a ser Bartholomeu. Em sua infância no Rio ele empinou pipa com Pedro II, pixava os muros com Zumbi dos Palmares, deu uns amassos na Anita Garibaldi e foi sacristão assistente do Frei Caneca. Na adolescência esteve na I Guerra Mundial defendendo seu país, quando ficou surdo depois de querer examinar se o canhão que carregava estava funcionando (ele colocou a orelha direita próxima à boca do canhão, e descobriu que estava funcionado). Namorador incorrigível, seu Bartholomeu até protagonizou um escândalo na época, quando foi acusado de pedofilia por, secundo denúncias, ter vivido um tórrido romance com uma mocinha “dimenor” que se tornaria atriz famosa anos depois, a Dercy Gonçalves. Temendo maiores presálias devido aos  inconsequentes atos libidinosos com a então pitéu, deixou as praias cariocas e foi se esconder em Quissa.

Mas, voltando ao avião, seu Bartholomeu, surdo que nem um pedaço de pau oco, não ouviu o aviso desesperado que a aerovelha nos fizera, e seguia firme rumo ao banheiro interditado, apertando o bilau com toda força pra não se mijar. Inclusive, segundo testemunhas, ele começara a andar em direção à casinha antes mesmo de Podridão chacoalhar o local, mas, pelo avançado da idade, estava chegando próximo à porta coisa de quase uma hora depois de sua partida. Apesar de toda rapidez super-heroica de movimentos, não consegui chegar a tempo de impedir que seu Bartholomeu entrasse no banheiro. E, o que era pior, ele se trancou. Quando cheguei, imediatamente coloquei um de meus ouvidos na porta e o que pude ouvir precariamente foi uma expressão abafada, porém meio desesperada, algo como “pulga que partiu e filho da fruta”, seguido de um barulho seco, como algo indo ao chão. Os momentos que se seguiram foram dramáticos. Uns tentavam arrombar a entrada para resgatá-lo com vida, outros rezavam com as mãos dadas já encomendando a alma do velho. Claro, Bispo Juvenal já estava na área e pedia cinco pratas dos fiéis para, representando seu Bartholomeu, pagar o pedágio pro Céu. Mesmo sem minha roupa de Spider, eu tinha de usar alguns de meus poderes para tirar o velho daquela situação. Sem perder tempo, coloquei minha mão direita na maçaneta, a perna esquerda na parede ao lado da porta e, com toda minha força descomunal, puxei de uma vez. Como mencionei anteriormente, aquele esboço de avião foi “construído” nas coxas, logo, é dispensável dizer que as peças não eram da melhor qualidade. Portanto, com meu movimento de puxar com tudo, a maçaneta veio junto, e nós (maçaneta e eu) formos parar na cabine da tripulação. No meio do caminho, encontramos a aerovelha, que tentou me segurar e veio com a gente. Depois de se recuperar do impacto, o negão que pilotava (que foi apresentado como comandante Tião), conseguiu sair de dentro do painel e, com a destreza de antes. voltar a guiar a aeronave. Com a ajuda dos co-pilotos, consegui tirar a maçaneta da boca da aerovelha que, lamentavelmente, perdeu os seis dentes que restavam. Após salvar a simpática senhora, parti veloz para resgatar seu Bartholomeu. Em frente ao banheiro, doutor Mento de Assis, o médico mais conceituado de Quissamanduca, sentenciou: “Pelo tempo que tá lá dentro, o velho já era!”. Realmente eu não podia esperar mais. Dei alguns passos para trás e parti feroz para um golpe de artes marciais que aprendi com meu mestre e guru Chim-Pan-Zé. Varejei a porta, meti os córneos na caixa da descarga e caí de costas em cima de seu Bartholomeu. Ao reparar o coroa imóvel embaixo de mim, pensei no ato que fosse tarde demais. Desesperado, peguei o rosto de seu Barthô e tentei reanimá-lo dando umas tapas na orelha. De repente, o olho direito do velho se abre trêmulo e ele, num esforço hercúleo, suplica pausadamente: pe-lo a-mor de De-ussss (pausa longa)! Me ti-ra da-qui! A missão de um super-herói é árdua e penosa, não pode haver obstáculos que impeçam a salvação de uma pessoa em perigo, nem mesmo aquele cheiro desgraçado que sufocava até a alma, doida pra se desprender do corpo e vazar daquele banheiro maldito. Coloquei o velho no colo e, dando um grito que mesclava esforço e desespero, me impulsionei para fora, para delírio dos passageiros que vibraram ao perceber que seu Bartholomeu estava vivo. Após o salvamento, o banheiro foi definitivamente interditado, com um saco preto tampando o rombo na porta deixado por mim.

A viagem parecia voltar ao normal, quando a aerovelha anunciou que o jantar seria servido. Já refeito dos minutos intermináveis vividos dentro daquele banheiro do inferno (fiquei meia-hora no balão de oxigênio), encarei a notícia sobre o rango como uma ótima, pois eu estava mesmo cheio de fome. O carrinho foi passando, e cada passageiro pegando seu prato, até chegar minha vez e, simultaneamente, a de Tunim, sentado ao meu lado. Recebemos nossos pratos de alumínio e, ao retirar a tampa, vi que era sopa. O desafio agora seria tomar sopa em um avião que parecia um ancião com Mal de Parkson, de tanto que tremia.

Enquanto eu arquitetava um plano para encarar a janta, Tunin se mostrava totalmente refeito da “ligeira” indisposição intestinal, pois, sem a menor cerimônia, colocou o prato na boca e, de uma vez, virou toda a sopa pra dentro. Antes mesmo que a aerovelha conseguisse empurrar o carrinho para oferecer a refeição para o passageiro sentado à nossa frente, aquele mamute do mangue pegou mais seis pratos e empilhou em seu colo. Admito que aquela sequência de prato a prato sendo bebido em questão se segundos foi impressionante. Eu nem havia pego minha colher e Tunin já se fartara com os sete pratos de sopa de cebola acompanhada com rodelas de pimentões. Naquele instante aprendi uma lição para a vida inteira. Percebi que até um ser retardado como Tunin Podridão é capaz de ensinar algo. Explico: ao utilizar sua “técnica”, Tunin foi o único que conseguiu tomar a sopa. O avião sacudia tanto, que foi realmente impossível que qualquer um de nós normais (ou quase) pudesse abocanhar uma colherada sequer. Seu Bartholomeu, coitado, tinha sopa na testa, nas sobrancelhas, nos cabelos, no pescoço, mas pra dentro, nada.

E o avião chacoalhava, a sopa na pança de Tunin também, e mais uma lição aprendi em seguida, agora de efeito bélico: ao misturar cebola e pimentão em uma sopa e agitar tal combinação em um recipiente como a barriga daquele animal, cria-se uma munição devastadora, capaz de transformar os armamentos mais pesados dos traficantes dos morros do Rio em brinquedinho de criança. Consegui ver bem o momento em que o arroto foi se formando. Um barulho como o de uma descarga sem água e o olhar perdido de Tunin eram a certeza de que algo extraordinário estava por acontecer. Mas antes, é necessário lembrar a todos a definição literal da palavra arroto: “erupção ruidosa de gases advindos do estômago”. Minha gente, ao abrir a boca, aquele filho do cão produziu o som mais terrível que ouvi na vida. Além de assustadoramente alto (quebrou pelo menos umas dez janelas do avião), o arroto foi impressionantemente longo (por baixo, um minuto). Mas o mais aterrorizante foi a rodela de pimentão que partiu das entranhas de Podridão. Como os movimentos sincronizados que os espectadores fazem acompanhando a bolinha durante uma partida de tênis, todos os passageiros daquele avião do inferno seguiram com os olhos a trajetória do projétil catapultado da boca de Tunin Podridão. O tempo parecia em slow motion. Assustados, todos acompanhavam dramaticamente (me lembro bem de uma pobre vozinha abraçando os netinhos de olhos arregalados). A viagem do legume voador só terminou quando se chocou violentamente com a parede que protegia a cabine dos tripulantes. O desfecho foi ainda mais impressionante: a rodela do pimentão grudada na parede e já em adiantado estado de putrefação. Após aquele momento interminável, as reações foram as mais diversas. Enquanto uns choravam desesperados, outros aplaudiam aliviados por ainda estarem vivos.  Em seguida, mais um co-piloto entrou em ação. Agora para tentar retirar a rodela de pimentão da parede. A bicha tava grudada, e o bravo tripulante, munido de uma espátula e um martelo, conseguiu, após muito sacrifício, concluir sua missão, porém levando junto um bom pedaço da parede.

Graças a Deus, este foi o último momento dramático que vivemos naquela viagem, que terminaria em poucos minutos, pois já estávamos bem próximo de nosso destino final, o aeroporto Santo Abílio da Moringa, em Piriri do Pororó. Mas antes que aterrissássemos, no entanto, Frei Natanael, sempre zeloso ao sacerdócio, protagonizou um belo instante ecumênico. Equipado com uma bacia cheia d’água e uma toalha, rebatizou nosso herói, que daquele dia em diante passou a ser chamado de Tunin Vulcão.

Nenhum comentário: