Guiando um carrinho de supermercado, a
aerovelha passava de banco em banco para oferecer o lanche, que era um pão com
ovo, um copo de refresco de caju (quente) e uma mariola pra sobremesa. Ao
chegar na vez de Tunim Podridão, o paquiderme, guloso que nem a porra, pegou
logo oito pães e já saiu matando. Eu peguei o meu kit e também tratei de comer
logo antes que Podridão transformasse meu pãozinho com ovo em presa. Depois de
lanchar, resolvi ir até a tripulação pra tirar umas dúvidas sobre o trajeto. Quando
abri a porta da cabine, vi o negão pilotando só com o braço direito, porque o
esquerdo tava pra fora da janela, com sua mão segurando um cigarro. Os dois
assistentes disputavam uma animada partida de purrinha (palitinho, dependendo da região). Nada disso, porém, me
impressionou mais do que a imagem que vi sobre painel de controle: uma garrafa
aberta de cachaça (a Fogo no Rabo)...praticamente vazia. Instintivamente, olhei em direção ao
retrovisor que tanto estranhei no início e pude ver o olhar perdido do piloto: os olhos do negão eram duas bilhas tão vermelhas que parecia ter usado groselha
como colírio. Bem, claro que depois disso só me restou voltar para o meu lugar
e chorar muito, pois realmente senti que o fim estava próximo.
Depois de uns cinco minutos de um pranto
que parecia incontrolável percebi que as emoções estavam só começando, pois
ouço a voz de Tunim: “Cocô! Tunim qué cocô!”. Apesar de atordoado com o desfecho
iminente, eu não estava surdo. Aquela criatura queria cagar e, pela expressão
contraída, seria ali mesmo. Lembrei dos oito pães com ovo abatidos e, logo após
o grito desesperado que dei, agarrei a cabeça de Podridão e, olhando bem dentro
de seus olhos, supliquei: “Não, Tunim! Cocô, banheiro! Cocô, banheiro!” Graças
ao bom Deus, Podridão teve piedade de nossas almas e se levantou, caminhando
lentamente em direção ao toalete. Bom, acho que não preciso dizer que ele teve
de entrar de ré, pois, por ser literalmente maior que a casinha, não teria como
se virar caso entrasse de frente. A cena de Podridão sentando no vaso antes de
fechar a porta foi a certeza de que a vida não tinha mais sentido pra mim.
Acomodado em meu banco, olhei a corda de segurança e pensei em me enforcar, mas
um cheiro inacreditável passou a tomar conta do ambiente e me desconcentrou.
Percebi que, após aqueles vinte minutos que pareceram vinte segundos, Podridão
caminhava de volta à poltrona, enquanto uma correria louca acontecia nos
últimos lugares, deixando deserta a parte próxima ao banheiro. O ocorrido foi
que aquele desgraçado despejou o que restou dos pães com ovo, dos copos de refresco
quente de caju e das dezenas de mariolas no vaso sanitário, tudo em forma de
merda. Os poucos segundos de porta aberta para Podridão sair do banheiro já
foram suficientes para instalar o caos na aeronave. Para completar aquele
cenário de sucursal do inferno, o avião não tinha ar condicionado e sim um
ventilador de teto que não dava vazão. Foram novos momentos de pânico, que levaram
o Bispo Juvenal (criador da Igreja Universal do Juvenal) a sugerir um suicídio
coletivo. Os interessados colocariam cinquentinha num envelope pras despesas do
translado da alma pro céu. Graças a Deus, um dos co-pilotos apareceu correndo
com um lança-chamas e desinfetou o local com jatos de desodorante Avanço.
Dispensável dizer que, após os trabalhos
intensos de Podridão, o banheiro do avião estava interditado para todo o sempre,
passando a fazer sentido os penicos que integravam o kit-viagem. A aerovelha
comunicou a todos que seria impossível usar a casinha devido ao estado
lamentável deixado por Podridão. Eu imaginava que, após o aviso, ninguém
corresse mais riscos, mas em um dado momento pude ver Bartholomeu Bonifácio, no
alto de seus 132 anos, caminhando lentamente, porém determinado, em direção ao
banheiro. Seu Bartholomeu era uma figura lendária em Quissamanduca, amigo de
personagens ilustres da história do Brasil. Nascido em Portugal, veio ainda
criança para o Rio de Janeiro. Aliás, Bartholomeu não é o nome verdadeiro do
velho. Seu pai era um militante radical do partido comunista em Lisboa e
resolveu registrá-lo como Bartholonosso, que dava um ar mais socialista. No
entanto, com dois dias na Cidade Maravilhosa o nome verdadeiro caiu, e Bartholonosso
passou a ser Bartholomeu. Em sua infância no Rio ele empinou
pipa com Pedro II, pixava os muros com Zumbi dos Palmares, deu uns amassos na Anita
Garibaldi e foi sacristão assistente do Frei Caneca. Na adolescência esteve na
I Guerra Mundial defendendo seu país, quando ficou surdo depois de querer
examinar se o canhão que carregava estava funcionando (ele colocou a orelha direita
próxima à boca do canhão, e descobriu que estava funcionado). Namorador
incorrigível, seu Bartholomeu até protagonizou um escândalo na época, quando
foi acusado de pedofilia por, secundo denúncias, ter vivido um tórrido
romance com uma mocinha “dimenor” que se tornaria atriz famosa anos depois, a
Dercy Gonçalves. Temendo maiores presálias devido aos inconsequentes atos libidinosos com a então pitéu, deixou as praias cariocas e foi se esconder em Quissa.
Mas, voltando ao avião, seu Bartholomeu,
surdo que nem um pedaço de pau oco, não ouviu o aviso desesperado que a
aerovelha nos fizera, e seguia firme rumo ao banheiro interditado, apertando o
bilau com toda força pra não se mijar. Inclusive, segundo testemunhas, ele
começara a andar em direção à casinha antes mesmo de Podridão chacoalhar o
local, mas, pelo avançado da idade, estava chegando próximo à porta coisa de
quase uma hora depois de sua partida. Apesar de toda rapidez super-heroica de movimentos, não
consegui chegar a tempo de impedir que seu Bartholomeu entrasse no banheiro. E,
o que era pior, ele se trancou. Quando cheguei, imediatamente coloquei um de
meus ouvidos na porta e o que pude ouvir precariamente foi uma expressão
abafada, porém meio desesperada, algo como “pulga que partiu e filho da fruta”,
seguido de um barulho seco, como algo indo ao chão. Os momentos que se seguiram
foram dramáticos. Uns tentavam arrombar a entrada para resgatá-lo com vida,
outros rezavam com as mãos dadas já encomendando a alma do velho. Claro, Bispo
Juvenal já estava na área e pedia cinco pratas dos fiéis para, representando seu
Bartholomeu, pagar o pedágio pro Céu. Mesmo sem minha roupa de Spider, eu tinha
de usar alguns de meus poderes para tirar o velho daquela situação. Sem perder
tempo, coloquei minha mão direita na maçaneta, a perna esquerda na parede ao
lado da porta e, com toda minha força descomunal, puxei de uma vez. Como
mencionei anteriormente, aquele esboço de avião foi “construído” nas coxas, logo, é dispensável dizer que as peças não eram da melhor qualidade. Portanto, com
meu movimento de puxar com tudo, a maçaneta veio junto, e nós (maçaneta e eu)
formos parar na cabine da tripulação. No meio do caminho, encontramos a
aerovelha, que tentou me segurar e veio com a gente. Depois de se recuperar do impacto, o negão que
pilotava (que foi apresentado como comandante Tião), conseguiu sair de dentro
do painel e, com a destreza de antes. voltar a guiar a aeronave. Com a ajuda
dos co-pilotos, consegui tirar a maçaneta da boca da aerovelha que,
lamentavelmente, perdeu os seis dentes que restavam. Após salvar a simpática
senhora, parti veloz para resgatar seu Bartholomeu. Em frente ao banheiro,
doutor Mento de Assis, o médico mais conceituado de Quissamanduca, sentenciou:
“Pelo tempo que tá lá dentro, o velho já era!”. Realmente eu não podia esperar
mais. Dei alguns passos para trás e parti feroz para um golpe de artes marciais
que aprendi com meu mestre e guru Chim-Pan-Zé. Varejei a porta, meti os
córneos na caixa da descarga e caí de costas em cima de seu Bartholomeu. Ao
reparar o coroa imóvel embaixo de mim, pensei no ato que fosse tarde demais.
Desesperado, peguei o rosto de seu Barthô e tentei reanimá-lo dando umas tapas
na orelha. De repente, o olho direito do velho se abre trêmulo e ele, num esforço
hercúleo, suplica pausadamente: pe-lo a-mor de De-ussss (pausa longa)! Me ti-ra
da-qui! A missão de um super-herói é árdua e penosa, não pode haver obstáculos
que impeçam a salvação de uma pessoa em perigo, nem mesmo aquele cheiro
desgraçado que sufocava até a alma, doida pra se desprender do corpo e vazar
daquele banheiro maldito. Coloquei o velho no colo e, dando um grito que
mesclava esforço e desespero, me impulsionei para fora, para delírio dos
passageiros que vibraram ao perceber que seu Bartholomeu estava vivo. Após o
salvamento, o banheiro foi definitivamente interditado, com um saco preto
tampando o rombo na porta deixado por mim.
A viagem parecia voltar ao normal, quando a
aerovelha anunciou que o jantar seria servido. Já refeito dos minutos
intermináveis vividos dentro daquele banheiro do inferno (fiquei meia-hora no
balão de oxigênio), encarei a notícia sobre o rango como uma ótima, pois eu
estava mesmo cheio de fome. O carrinho foi passando, e cada passageiro pegando
seu prato, até chegar minha vez e, simultaneamente, a de Tunim, sentado ao meu
lado. Recebemos nossos pratos de alumínio e, ao retirar a tampa, vi que era
sopa. O desafio agora seria tomar sopa em um avião que parecia um ancião com
Mal de Parkson, de tanto que tremia.
Enquanto eu arquitetava um plano para
encarar a janta, Tunin se mostrava totalmente refeito da “ligeira” indisposição
intestinal, pois, sem a menor cerimônia, colocou o prato na boca e, de uma vez,
virou toda a sopa pra dentro. Antes mesmo que a aerovelha conseguisse empurrar
o carrinho para oferecer a refeição para o passageiro sentado à nossa frente,
aquele mamute do mangue pegou mais seis pratos e empilhou em seu colo. Admito
que aquela sequência de prato a prato sendo bebido em questão se segundos foi
impressionante. Eu nem havia pego minha colher e Tunin já se fartara com os
sete pratos de sopa de cebola acompanhada com rodelas de pimentões. Naquele
instante aprendi uma lição para a vida inteira. Percebi que até um ser retardado
como Tunin Podridão é capaz de ensinar algo. Explico: ao utilizar sua
“técnica”, Tunin foi o único que conseguiu tomar a sopa. O avião sacudia tanto,
que foi realmente impossível que qualquer um de nós normais (ou quase) pudesse
abocanhar uma colherada sequer. Seu Bartholomeu, coitado, tinha sopa na testa,
nas sobrancelhas, nos cabelos, no pescoço, mas pra dentro, nada.
E o avião chacoalhava, a sopa na pança de
Tunin também, e mais uma lição aprendi em seguida, agora de efeito bélico: ao
misturar cebola e pimentão em uma sopa e agitar tal combinação em um recipiente
como a barriga daquele animal, cria-se uma munição devastadora, capaz de
transformar os armamentos mais pesados dos traficantes dos morros do Rio em brinquedinho
de criança. Consegui ver bem o momento em que o arroto foi se formando. Um
barulho como o de uma descarga sem água e o olhar perdido de Tunin eram a
certeza de que algo extraordinário estava por acontecer. Mas antes, é
necessário lembrar a todos a definição literal da palavra arroto: “erupção
ruidosa de gases advindos do estômago”. Minha gente, ao abrir a boca, aquele
filho do cão produziu o som mais terrível que ouvi na vida. Além de
assustadoramente alto (quebrou pelo menos umas dez janelas do avião), o arroto
foi impressionantemente longo (por baixo, um minuto). Mas o mais aterrorizante
foi a rodela de pimentão que partiu das entranhas de Podridão. Como os
movimentos sincronizados que os espectadores fazem acompanhando a bolinha
durante uma partida de tênis, todos os passageiros daquele avião do inferno seguiram
com os olhos a trajetória do projétil catapultado da boca de Tunin Podridão. O
tempo parecia em slow motion. Assustados, todos acompanhavam dramaticamente (me
lembro bem de uma pobre vozinha abraçando os netinhos de olhos arregalados). A
viagem do legume voador só terminou quando se chocou violentamente com a parede
que protegia a cabine dos tripulantes. O desfecho foi ainda mais
impressionante: a rodela do pimentão grudada na parede e já em adiantado estado
de putrefação. Após aquele momento interminável, as reações foram as mais
diversas. Enquanto uns choravam desesperados, outros aplaudiam aliviados por
ainda estarem vivos. Em seguida, mais
um co-piloto entrou em ação. Agora para tentar retirar a rodela de pimentão da
parede. A bicha tava grudada, e o bravo tripulante, munido de uma espátula e um
martelo, conseguiu, após muito sacrifício, concluir sua missão, porém levando
junto um bom pedaço da parede.
Graças a Deus, este foi o último momento
dramático que vivemos naquela viagem, que terminaria em poucos minutos, pois já
estávamos bem próximo de nosso destino final, o aeroporto Santo Abílio da
Moringa, em Piriri do Pororó. Mas antes que aterrissássemos, no entanto, Frei
Natanael, sempre zeloso ao sacerdócio, protagonizou um belo instante ecumênico.
Equipado com uma bacia cheia d’água e uma toalha, rebatizou nosso herói, que
daquele dia em diante passou a ser chamado de Tunin Vulcão.
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