sexta-feira, 17 de maio de 2013

Capítulo 26 - Não estamos sós



Muitos devem se lembrar do episódio que passei na Casa da Mãe Candinha (capítulo 16). Aquilo apenas fortaleceu o cagaço que sempre tive de coisas referentes ao além e adjacências. Como autêntico super herói, não tenho medo de nada vivo (exceto, claro, algumas baratas parrudas, Cleitoválter e Tunim Podridão), mas o que já passou dessa pra melhor realmente tira um pouco o meu foco e não me traz boas recordações, como contarei a seguir.
 
Irajá era um amigo de bar, parceiro mesmo, daqueles que não te deixava sozinho em momento algum da esbórnia. Manguaçado ao cubo, era sempre o último a sair, devidamente carregado pra fora do Salum Briga e deixado sempre estirado na porta de casa. Era querido por todos, até pelos animais. A alegria da cachorrada do bairro, que lambia freneticamente os córneos daquele fiel pudim de cachaça. Cãezinhos de outras localidades também vinham fazer a festa. Alguns até mijavam nele. Até que um dia uma fatalidade pôs fim ao meu amigo. Na realidade, apenas se cumpriu a antevisão de sua sábia mãe, que profeticamente escolheu o nome: Irajá. E ele foi.

Como acontecia um dia sim e o outro também, meu velho companheiro, após beber até a água do aquário que ficava no balcão (os quatro peixinho coloridos e a bolinha de gude que os moleques jogaram lá dentro foram junto), foi retirado do bar por Joca Pivara, atendente do boteco, e que naquele dia foi um completo irresponsável em sua missão. Deu no que deu. Ao avistar Solange Mustangue, uma mulata de parar o trânsito que trabalhava de babá na casa de Gregório Chapeleta, servindo de ama-seca para o pequeno Jeremias, de um aninho (dizem as más línguas que os irmãos Sandoval, de 15, Alípio, de 17, os gêmeos Dorival e Dovaril, de 22, e o próprio Chapeleta caíam também nos peitos daquele Mustangue turbinado), Joca largou Irajá de qualquer jeito no chão e disparou atrás de Solange. Meu querido amigo foi deixado de cara pro cimento e bunda pra lua. Como acontecia em todas as noites, lá veio a cachorrada, e, ao que tudo indica, um dos cães mais animados puxou as calças já frouxas de Irajá e dividiu a indumentária com os demais amiguinhos, deixando meu colega e suas desprotegidas nádegas expostas ao Deus dará. Mas quis o destino que, impressionantemente excitado após ser desprezado pela eguinha Pocotó, Luis Ignácio (o jegue que servia de locomoção para padre Loxa) fugisse naquela mesma noite do terreno baldio da paróquia e fosse ao encontro de Irajá e sua bunda desamparada. Ao avistar aquele busanfã branco e encachaçado, o jegue (que, segundo testemunhas, chegou a lamber os beiços) partiu feroz para saciar o clamor de sua virilidade. E Irajá morreu.

A comoção foi geral. Em homenagem ao passamento do intrépido cliente, seu Vasco decidiu eternizar a mesa 10, colocando a placa “O Salum Briga reverencia o nosso Pudim de Ouro” e decretou luto oficial de três dias.

Por questões de fluxo excessivo (foram 36 velórios seguidos), o enterro foi marcado excepcionalmente para as 22 horas do dia seguinte. A cerimônia anterior seria às 17, mas como o “encomendador” da alma era Joca Metralha (que demorava coisa de dez minutos pra falar “oi”), a do Irajá foi empurrada pra cinco horas mais tarde.
Emocionado, cheguei ao último encontro com meu amigo vinte minutos antes do horário marcado e, para o meu espanto, a única pessoa que avistei na sala foi justamente o “anfitrião”, enrolado com a bandeira do bloco “Segura que eu Chupo” e já devidamente acomodado no caixão. Me aproximei para uma última conversa com meu amigo. Mas arrepiou legal quando olhei pra Irajá. Ele estava com os olhos esbugalhados, vesgo e com a boca aberta, parecendo que ia gritar. Essa foi sua a última expressão na vida, que se foi no exato momento da impiedosa perfuração feita pelo jegue Luiz Ignácio.

Refeito do susto, comecei a conversar com meu velho parceiro, quando surgiu um ruído fino, que foi aumentando de volume. Aquele som era apavorante e inconfundível: um pum. Foi um peido de aproximadamente dez segundos de duração. Olhei para Irajá que, felizmente, se mantinha imóvel no caixão. Naquele salão imenso, eu não avistava mais ninguém, somente o defunto. Sabia que não tinha sido eu, e só sobrava Irajá. Ainda peguei a mão do meu amigo (gelada que nem a porra) pra ver se estava amarela, mas a bicha tava branquinha feito vela. Mal tive tempo de iniciar uma reflexão, porque subiu uma murrinha desgraçada. Um fedor impressionante tomou conta do recinto. Tonto e vendo tudo embaçado, tentei me segurar numa das alças do caixão pra não cair, mas foi em vão. Fui perdendo os sentidos e, com flashes sobre momentos da minha vida, arriando lentamente. Deitado no chão, buscando ar para tentar não fazer companhia a Irajá, abri os olhos marejados e, mesmo com a visão prejudicada pelo desfalecimento, visualizei a explicação para tal fenômeno, que nada tinha de mediúnico. O responsável por aquele pum maldito não fora Irajá nem algum fantasma porcalhão. De terno e gravata, igualzinho a um noivo de bolo, anão Carlos (que chegara ao velório antes mesmo que o morto e "aparecera" no salão depois de passar duas horas tentando, sem sucesso, cagar no banheiro dos funcionários) me revelou: não tô legal, Spider. Deve ser o cozido.

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