domingo, 15 de junho de 2008

Capítulo 18: Reverência a um herói esquecido

Realmente eu entendo porque sou adorado por milhões de pessoas no mundo. Todos precisam de uma referência para se espelhar e, quem sabe, um dia alcançar sua magnitude. Comigo não é diferente. Antes de ser um super-herói indestrutível, gostoso e sarado, sou uma pessoa com todas as características de um ser humano qualquer. Assim como vocês, que me adoram, também possuo um ídolo, este que merecia notoriedade tão intensa quanto a dos meus amigos Super-Man, Batman, Hulk, The Flash e Mulher Melancia. Trata-se de uma figura lendária em Quissamanduca: Setembrino Buscapé, um autêntico Highlander em toda região.
Filho de família humilde, Sete (por uma dessas coincidências inacreditáveis, a contração do nome era o números de dentes que meu herói tinha na boca) sempre teve de se virar para conseguir ajudar no sustento de casa. Seu pai, Justino Simandei, foi tomado de um mal súbito e abandonou a família assim que Setembrino nasceu. Dizem que ao ter o filho pela primeira em seus braços, seu Justino, sob o efeito do mal, tentou trocar o menino por três panelas e uma vassoura. Indignado com a proposta, o dono do armazém não topou: queria mais cinco pratas de forra.
Convivendo com a sensação de rejeição, Sete era um garoto solitário. Nós tentávamos nos aproximar, jogando um pouco de ração pra ele, mas quando se virava para nós, não ficava um pra contar história. Mesmo assim, eu admirava sua perseverança e força de vontade. Ele era uma pessoa capaz de se reerguer após as mais complicadas adversidades. Logo em seu primeiro emprego, deu provas de tamanha tenacidade e resistência. Era sub-assistente auxiliar de servente em um prédio no centro da cidade. Foi nesta atividade que, pela primeira vez, viu a morte de perto. Escalado para a função de eletricista, Setembrino deveria instalar a luminária da torre, que ficava a uma altura de 78 metros do árido solo de Quissamanduca. Colocado em uma catapulta, foi arremessado em direção ao alvo (devido à sua reconhecida rapidez, Sete teria de colocar a lâmpada gigante na tomada enquanto estivesse sobrevoando o local. Foi antes do lançamento que ele ganhou o apelido de Buscapé). Porém, como o cálculo não foi muito preciso, meu herói da infância passou dois quilômetros do desejado e foi parar no rio Paraguaçuá, conhecido por ser reduto de perigosos tubarões sanguinários (são os únicos no mundo que vivem em água doce). Após uma hora e meia lutando contra os predadores (ele contou 32), conseguiu escapar para espanto dos companheiros que, inexplicavelmente, promoviam uma festa de arromba quando ele retornou. Protegido por Deus, Setembrino sofreu apenas escoriações pelo corpo, porém perdeu as calças e um pedaço do órgão genital que foi encontrado uma semana depois boiando na margem do rio (inicialmente, os pescadores acreditavam ser uma espécie de peixe rola). Refeito do infortúnio, Sete ainda sofreria novo golpe ao retornar ao trabalho no dia seguinte. Fora demitido pelo tirano chefe de obras, Aderbal de Decana, que não se conformou com o fato de a tarefa não ter sido cumprida.
Necessitando muito de trabalho para ajudar sua mãe e os 18 irmãos menores, Setembrino foi atrás de novo emprego e, graças ao bom coração de seu Venério, dono do frigorífico da cidade, conseguiu novo trampo. Seria segurança. Preocupado com a onda de assaltos que assolava Quissamanduca (em menos de uma semana, já tinham sido roubadas duas latas de lixo, uma placa de Proibido Mijar no Poste e uma tampa de bueiro), Venério resolveu colocar alguém 24 horas tomando conta das carnes, e incumbiu Sete de fiscalizar a carga. A tarefa não era das mais árduas, o problemas mesmo era suportar os 45 graus abaixo de zero da câmara frigorífica. Zeloso com a saúde de seu novo empregado, seu Venério providenciou um gorro e uma camisa de mangas compridas (tinha um pequeno rombo na altura da axila direita). Competente ao extremo, Setembrino cumpriu a risca sua função, permanecendo por seis dias e seis noites em seu posto. Após trabalhar de segunda a sábado, ele folgaria no domingo. Folgaria, porque como ficou congelado, teve de passar o descanso sob forte processo de derretimento.
Eu poderia passar horas lembrando momentos inesquecíveis do esquecido grande herói, mas terminarei relatando o feito titânico que praticou, o maior de todos. Em uma bela tarde de sol, que fazia Quissamanduca parecer o Sudão, Setembrino ajudava a catar piolhos na cabecinha juvenil de seu irmão caçula, Da Cu (era pra ser Da Cunha, mas o escrivão passou mal na hora que anotava e faleceu. Com a confusão do ocorrido, ninguém se ligou que ainda faltava uma sílaba), quando viu sua avó cega, a doce Rosenalva, andando em direção à fossa, que estava a um metro dos pés cansados da pobre velhinha. Em uma atitude só comum aos seres iluminados, Sete partiu como uma flecha em direção à sua vovó e, a um passo da vala de excrementos, empurrou a senhora, salvando-a de uma tragédia maior. No entanto, Setembrino não contava com a infelicidade de escorregar no chão sebento do local e, perdendo o rumo, mergulhou de cabeça no buraco cheio de cocô, com uns três metros de profundidade. A apreensão tomou conta de todos. Primeiro, porque ao salvar sua avó, Sete acabou utilizando força excessiva, a velhinha saiu catando cavaco e despencou a ribanceira; e depois com a saúde do herói. Porém, cerca de dois minutos depois, para espanto de todos, eis que ele surge imponente das profundezas daquele poço de merda. Deste dia em diante, Setembrino Buscapé passou à imortalidade para todos os habitantes, vivos e mortos, de Quissamanduca Town. Toda vez que tosse, cospe um toletinho de cocô. Mais de trinta anos depois, Sete ainda segue carrega consigo lembranças daquele episódio. Toda vez que tosse, cospe um toletinho de cocô.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Capítulo 17: O Perigo Ronda a Internet

Este dia 12 de junho é dedicado aos namorados. Em homenagem à data tão especial, resolvi revelar a vocês, meus adoradores queridos, uma de minhas aventuras mais perigosas em minha mítica missão na Terra. POR FAVOR, TIREM AS CRIANÇAS DA FRENTE DO COMPUTADOR!
Firme em meus propósitos de seguir solitário a jornada quase messiânica de salvar a humanidade, eu sentia, no entanto, uma necessidade de ter uma companhia feminina; nem que fosse para algumas partidas de porrinha (em alguns locais também conhecido como palitinho). Numa agradável noite de inverno (a queda da temperatura para 35 graus era convidativa a uma noite de loucuras com uma fêmea selvagem), encontrei os amigos no bar do Seu Senta para nossa tradicional roda semanal de Salto do Sputnik, uma mistura de Anthrax e coquetel Molotov que era disponibilizada com exclusividade no estabelecimento. O encontro era uma agradável disputa para ver quem seria o segundo a permanecer em pé após as diversas rodadas daquela combinação etílica. A briga era pelo vice, porque o caneco já tinha dono: Carlão da Mureta, ex-motorista da linha 666 (Santa Cruz-Boca do Inferno). O campeão, que ganhou o apelido por sempre dar uma porrada no muro quando deixava o ônibus na garagem da empresa (durante as viagens, ele mamava três pet de dois litros contendo um líquido amarelado não identificado. Quando foi demitido ao invadir com o coletivo o escritório do dono da companhia, as garrafinhas foram apreendidas pela polícia, mas o perito faleceu após abrir uma delas e ninguém mais se atreveu a sentir o cheiro do troço), sempre ainda está começando os trabalhos quando o segundo é retirado de maca do botequim.
Já estávamos na sexta rodada quando Zeca Fura Bolo (tinha o péssimo hábito de dar um cutucão na bunda de dona Raimunda, uma senhora afro-descendente que cozinhava para o bar e fazia a Mulher Melancia parecer a Mulher Azeitona) me contou que conheceu uma gata fantástica pela internet. Aquilo me intrigou e, ao mesmo tempo, reacendeu em mim a volúpia de macho viril, adormecida após o pé na bunda que recebi de Marcleide, minha ex-noiva. Zeca, então, me deu o endereço do site: http://www.vaiqueetuataffarel.com.br/.
Excitado com a possibilidade de encontrar um novo alguém, decidi encerrar minha participação na disputa (nesse dia, a segunda colocação ficou com padre Cícero que, doidão, comemorou a conquista ficando nu na porta do bar).
Parti feroz para a lan house do bairro, o Cyber Nética do Zé (sempre tinha umas promoções legais, como meia-hora grátis de acesso a uns sites de sacanagem). Me cadastrei com o nome de Spider Strong, dei minhas características e, menos de cinco minutos depois, recebi uma mensagem. A moça se identificava como Gata Solitária Sedenta. Aquilo, para mim, era um sinal dos céus me abrindo o caminho para uma jornada de luxúria. Começamos a trocar mensagens e, em pouco tempo, estávamos íntimos, apaixonados e excitadíssimos. Ela disse se chamar Rô e estaria me esperando no Pelancão de Ouro, a churrascaria mais popular de Santa Cruz (as especialidades da casa eram o ovo cozido na brasa e a picanha de Calango). Marquei o encontro e voltei resoluto para a pensão do Vasco com a intenção de dar uma reforçada no desodorante, aproveitando também para colocar minha roupa de Spider e trocar a cueca (eu estava com a mesma a quatro dias). Após umas três burrifadas de Avanço em cada axila (não acho suvaco uma palavra muito bonita) e já devidamente equipado com minha inconfundível vestimenta, incluindo a nova Zarbo (era uma imitação de Zorba que eu tinha comprado na feira; três pratas um pacote com cinco), segui para o local do encontro. Pontual, cheguei ao Pelancão na hora marcada: meia-noite.
Controlando a ansiedade, abri a porta da churrascaria e entrei. Havia muito pouca gente no local, somente quatro mesas ocupadas: um coroa dormindo com a cara no prato, uma família (a curtição das crianças era arremessar a cadeira de rodas, com o avô pilotando, de um lado pro outro do salão), um anão (quando eu entrei, ele estava subindo na cadeira e, por isso, só o vi depois de um tempo) e uma senhora de uns 80 anos que não parava de sorrir. Escolhi uma mesa no canto e fiquei aguardando a entrada da minha deusa. O tempo foi passando e nada da mulher chegar. A família foi embora, seguida do anão. Depois dois garçons acordaram o coroa, que partiu também (reparei que tinha duas batatas fritas coladas na testa). Só restamos eu a senhora sorridente. Quando eu já me preparava para ir embora, notei que a velha veio caminhando na minha direção. Olhei para trás para ver se eu estava sentado próximo à porta do banheiro feminino, mas a única coisa que tinha atrás era uma parede com um pôster do Campinense (glorioso time da Paraíba que o dono da churrascaria, torcedor fanático do novel clube, fazia questão de exibir). Então, aquela criatura parou em frente à minha mesa e sussurrou com uma voz de quem parecia estar morrendo: “Você é tímido, né, Strong?”. Fui tomado por um frio da cabeça aos pés, meu coração ficou acelerado e a boca secou. Ainda aturdido com aquela visão do inferno, acompanhei os movimentos da velha puxando a cadeira e sentando à minha frente. “Prazer, Romária! Você pode me chamar de Rô!”. Naquele momento, fiz uma reflexão profunda tentando lembrar o que eu tinha aprontado de perverso em minha infância. Alguma coisa muito feia eu tinha que ter feito para merecer aquilo.
Subitamente, me veio uma incontrolável vontade de chorar, mas, buscando uma força sobrenatural, resisti. Mas foi por pouco tempo. Vencendo minha resistência hercúlea, as lágrimas banharam meu rosto após a segunda intervenção daquela pessoa: “Você entra sempre no Vai Que É Tua Taffarel?”. Com a voz embargada, apelei àquela senhora: “Não faz isso não!”. Ainda com o sorriso no focinho (na realidade, a velha não estava rindo; era uma plástica tão esticada que fazia a boca da Elza Soares parecer com a da Angelina Jolie), aquilo chamou um garçom: “Qual o melhor conhaque da casa?”, pediu a velha. “Só tem o Salamandra”, respondeu o cara, que era igualzinho ao Luciano, aquele que fica na aba do Zezé di Camargo. Dona Romária olhou pra mim, piscou com o olho direito (por causa do botox o esquerdo foi junto) e ordenou ao garçom: “Então manda dois copos! Um pra mim e outro pro gato!” E ela ainda falou isso alto, pra todos os outros funcionários ouvirem. Foi nessa hora que me descontrolei. Dei-lhe uma porrada nos córneos, e a jaguatirica velha entrou por dentro da copa. Depois de ouvir o esporro de pratos caindo lá dentro, corri buscando a saída daquele lugar. Dois garçons se plantaram na minha frente tentando me impedir, mas nem imaginavam estar diante do verdadeiro e único Spider-Man: levei os dois com porta e tudo, e segui correndo até me perder pelas ruas escuras de Santa Cruz.
Dois dias depois, já refeito do susto, andava pelo calçadão de Madureira (fui aproveitar uma promoção de pilhas recicladas para poder acompanhar um jogo treino do Fogão contra um combinado de Engenheiro Pedreira) quando vi, pendurado em uma banca de jornal, a manchete do Meia-Hora: “ANCIÃ ENGOLE A DENTADURA APÓS SER ATACADA PELO HOMEM-ARANHA TARADO.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Capítulo 16: Contatos Imediatos do 4º Grau

A decisão de Marcleide em terminar tudo foi um golpe muito forte para mim. Durante um bom tempo vagava pelas ruas de Santa Cruz, virando noites ensolaradas (o calor era tão insuportável naquele buraco, que estou convicto de que a bola branca cheia de buracos era o sol disfarçado) e entornando tudo que via pela frente. Como não podia ficar no bar da esquina (cheio de manguaça, eu poderia querer afogar minhas mágoas encarando o seu Senta), tive de buscar encher o focinho em outras redondezas. Certa vez, já bem caneado, vi um cartaz preso a um poste: “Mãe Candinha traz de volta a mulher amada em três dias”. Como não enxergo muito bem e ainda estava bêbado, tive que conferir de pertinho, quase cheirando o cartaz. Mas era aquilo mesmo. Anotei o número do telefone e voltei à pensão com a sensação de um novo horizonte em minha vida.
Apesar da ressaca desgraçada e do medo secular por tudo que dizia respeito ao além, acordei radiante no dia seguinte, muito confiante de que meu encontro com a vidente seria um sucesso retumbante. Pulei da cama rapidamente, porém caí em seguida, porque via tudo girar. Depois de beber um copo de 500 ml de suco de boldo para curar a ressaca (demorei coisa de uma hora pra beber, porque quando colocava aquele troço verde na boca, mandava de volta pro copo), estava pronto para a gloriosa missão de trazer meu amor de volta.
Já em ponto de bala, liguei para o número anotado. Atendeu uma moça que se identificou como Maria do Socorro. Ela dizia ser uma espécie de assistente de Mãe Candinha. Expliquei meu problema e a moça marcou a consulta para a noite do mesmo dia.
Apesar de um pouquinho cabreiro (a possibilidade de ter minha Marcleide de volta vencia o medo que carregava desde quando era criança pequena em Quissamanduca. Ouvir palavras como espírito, fantasma e correlacionadas, me deixava em pânico).
O lugar era longe pra diabo, mas mesmo que fosse em Plutão eu iria arrumar um jeito de chegar até lá. Peguei um ônibus, depois um trem e a seguir uma kombi que me lavaria ao destino final. Após eu dizer o endereço pra onde queria ir, o motorista me olhou pelo retrovisor e fez o sinal da cruz. Admito que aquilo me intrigou, mas a certeza de ter minha amada de volta logo me fez esquecer o ocorrido..
Chegando ao local, o piloto nem esperou eu pagar a corrida. Saiu cantando pneu e sumiu na estrada deserta. Depois de andar por uns 40 minutos, finalmente cheguei onde queria: número 45.299. Era um barraco que tinha uma placa no alto da porta com os dizeres: “Casa do Nhonhô”. Dei uma respirada fundo (me lembrei da minha família e dos amigos) e duas pancadinhas de leve na porta de madeira. Lá de dentro, uma voz grave e rouca lá ordenou: “Entra! Eu estava à sua espera!” Nesse momento, senti um barulho profundo em minha barriga (me recordei do cachorro-quente com 12 molhos que comi no trem). Abri a porta e fui entrando. Estava tudo escuro e, no segundo passo que dei, pisei no rabo de um gato preto que estava no local. Eu me assustei com o berro do bicho e, numa reação instintiva de fuga, gritei ainda mais alto que o gato e meti os córneos na porta que ainda estava entreaberta. Ainda meio tonto com a porrada que dei, levantei-me e ouvi a voz novamente. “Não se preocupa! Sadam é inofensivo! Pode se aproximar!”.
Eu não conseguia enxergar nada, mas fui andando até não perceber que caminhara demais. Quando ouvi o apreensivo “Pára!”, já era tarde. Derrubei mesa, cadeira e a velha que estava sentada. Sem jeito, ajudei a senhora a se levantar e a recolocar mesa e cadeiras nos lugares. A velha, então, se apresentou: “Sou mãe Candinha! Vejo que você está um pouco tenso. Não se preocupe. Nhonhõ virá te ajudar!” Na terceira tentativa em falar (a voz não saía), perguntei à moça: “Minha senhora, eu vim aqui porque no cartaz dizia...”. Imediatamente, Mãe Candinha me interrompeu: “Meu filho, de hoje a três dias você terá sua amada de volta!”. E ordenou em seguida: “Senta aí!” A vontade em atender rápido o desejo daquela pessoa me fez tomar a atitude intempestiva de me sentar de pronto, sem me preocupar em perceber se a cadeira estava por ali. Após sentir o piso duro do local (fui de bunda, de costas e depois com a cabeça de encontro ao chão), consegui me erguer e, ao avistar a cadeira (estava a uns dois metros de mim), finalmente me sentei. Mãe Candinha, então, me instruiu para começarmos o ritual: “Vou invocar o espírito de Nhonhô e você deverá repetir em voz alta o mantra Aga Aga!”.
É importante salientar que o cachorro-quente que comi no trem entrava em ação constantemente em meu organismo, provocando uma sensação de alívio, porém ao mesmo tempo de desconforto entre minha região glútea e a calça. De repente, Mãe Candinha deu um grito e, com as mãos para o alto, clamou: “Aga Aga!”. Sem pensar nem meia vez, mandei o tal mantra de volta. A velha gritava de lá e eu repetia de cá. Isso aconteceu umas dez vezes, até que ela deu um bico na mesa. Foi neste instante que as coisas se complicaram. O que restava do lanchinho feito na viagem escorreu pelas minhas pernas. Com os olhos fincados nos meus e a voz igualzinha à do Cid Moreira, Mãe Candinha disse: “Uhm, uhm! ZunNhonhô vai trazer zua amada! Qual o zunnome dela?”. Fiquei devendo essa resposta ao moço. Usando minhas habilidades de super-herói, pulei da cadeira e varejei a janela que, claro, estava fechada. Ao cair para o lado de fora da casa, saí correndo pedindo por socorro. Foi aí que dona Maria (a que atendeu o telefone quando liguei) apareceu. Ela era vizinha de Candinha e auxiliava alguns clientes que, assim como eu, eram um pouco impressionados (daí o sobrenome artístico). A santa mulher me emprestou uma bicicleta do filhinho de quatro anos (as rodinhas laterais atrapalharam um pouco) e, sem olhar pra trás, deixei o local para nunca mais voltar. Desse dia em diante, definitivamente tirei minha ex-noiva da cabeça e voltei, exclusivamente, a pensar em minha missão, que é proteger fracos e oprimidos.

Capítulo 15: O Triste Fim do Noivado com a Doce Marcleide

É complicado para um super-herói se apegar aos caprichos do coração. Normalmente, o resultado não é dos mais agradáveis. No meu caso, chegou a ser traumático, pois eu era completamente apaixonado por Marcleide, uma bela menina que conheci na Feira de São Cristóvão.
Linda, meiga, tímida e inteligente (por eu estar muito envolvido, talvez ela não fosse tão linda, tão meiga, tão tímida e tão inteligente assim), era uma moça prendada, que morava com os pais e passava boa parte de seu tempo cuidando do avô, este o pivô de nossa separação e responsável pelo término de uma relação que tinha tudo para ser eterna.
Namorávamos há meses quando Marcleide, impulsionada por sua inocência, me convidou a ir à sua casa conhecer sua família. Fiquei emocionado com o convite, e até tomei um banho para conhecer meus futuros sogros e avô. Ao chegar à humilde casa, que ficava apenas a alguns quilômetros da pensão do seu Vasco, fui recepcionado pelo terno sorriso de Marcleide e a companhia de seus simpáticos pais, seu Onofre e dona Jupira. Ao entrar, vi um cachorro magro e um senhor com um pijama de flanela sentado em uma poltrona antiga, bem no canto da sala. Era seu Juventino, o avô, que minha noiva tanto amava e queria levar junto quando nos casássemos. Imóvel, ele apenas fixava o olhar em mim. Marcleide já me alertara que seu vovô era surdo, mudo e não mexia um único membro (aquele, então, nem pensar). Assim, seu Juventino ficava lá, sentado, vendo o tempo passar (talvez imaginando que o velho fosse um móvel da casa, de vez em quando o cachorro dava umas mijadas nas pernas do coroa).
Sem a presença do velhinho, sentamos os quatro à mesa para o jantar; uma suculenta rabada com agrião e polenta. Após nos fartarmos, Marcleide tratou de alimentar seu avô, que continuava me sacando. Ele parecia até um boneco de cera. Marcleide enchia a colher com a iguaria, o velho abria a boa, mastigava a comida e engolia o bruto. Tudo isso sem tirar os olhos de mim. Eu seguia conversando com seu Onofre e dona Jupira, mas quando me virava pra trás, lá estava o velho me manjando. Aquilo começou a me incomodar um pouco e comentei com Marcleide, que disse para não me importar, pois o avô talvez estivesse me estranhando.
Quando eu já tinha me acostumado com o fato de estar sendo monitorado por uma múmia que abria a boca, senti no ar um cheiro horrível. Era impressionante a catinga, mas nem seu Onofre, nem dona Jupira pareciam se importar, muito menos Marcleide. Todos continuavam agindo normalmente, sem que nada estivesse acontecendo. Pensei que estava tendo uma alucinação olfativa (se é que isso existe), mas logo depois o cheiro ficou ainda pior. Virei para tentar me comunicar com minha noiva (eu não conseguia respirar e já estava perdendo os sentidos) e, mais uma vez, vi o velho me olhando, só que agora ele estava com um sorriso na boca entreaberta. Por um instante, achei que tivesse morrido e estava diante do capeta, mas voltei à consciência sem, no entanto, conseguir me expressar com Marcleide. Eu ouvia, ao longe, as vozes dos pais de minha noiva (parecia que eles estavam falando comigo), mas eu não conseguia entender nada. Meus movimentos foram ficando mais ralentados, e senti a nítida impressão que iria desmaiar. Em um último e desesperado movimento, joguei meu corpo para trás para pedir socorro à minha querida amada, porém o que vi me aterrorizou: Sempre com aquele sorriso no rosto, o velho foi tombando levemente para um dos lados e voltava a posição original, com o cachorro, magro que nem um faquir, saindo cambaleando pela sala com a boca aberta. Foi aí que ouvi a voz de Marcleide bem ao longe dizer: “Ah, amor, você não se importa com os gases do vovô, né?”. Foram as últimas palavras que ouvi antes de perder o sentido. Reanimado com um balde de água gelada na cara, me levantei que nem um touro enfurecido e, completamente descontrolado, parti pra cima do velho e comecei a esganá-lo. Só não matei aquele velho safado porque seu Onofre me acertou com um pedaço de pau. Acordei dois dias depois com um talho na cabeça e sem minha adorada Marcleide, que indignada com minha atitude destemperada, nunca mais quis saber de mim.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Capítulo 14: Spidermóvel

Como vocês sabem, a criação deste blog é uma oportunidade para desfazer mitos e revelar à humanidade minha verdadeira história. Após longo tempo meditando em meu local de reclusão favorito (os Montes Tículos), volto para dar continuidade às revelações extraordinárias.
Depois de alguns meses morando no Rio, vi que era necessário ter um automóvel para dar continuidade à minha missão de salvar as pessoas dos mais terríveis perigos. Percebi isso quando seguia pelo alto de determinados bairros, usando minhas teias, e levava uma pá de pedradas. A molecada vibrava cada vez que me acertava. Até aí, tudo bem. Arrumei um capacete com um vizinho que era motoboy lá em Santa Cruz, e segui fazendo a festa da pivetada. Mas quando descobri que os garotos faziam pontuação, e acertar a parte da frente da sunga do Spider valia cem pratas, resolvi buscar uma alternativa mais segura.
Em uma bela noite, dei uma passadinha rápida no botequim do Seu Senta (um senhor que a moçada dizia ser meio baitola) e vi em uma das paredes o anúncio escrito à mão sobre uma rifa que correria na semana seguinte. Uma das atrações era um carro. Senti que o destino poderia estar me reservando uma grata surpresa. O anúncio ordenava a premiação: 5º prêmio – duas entradas para o show do grupo de pagode Suvaco Suado; 4º prêmio – uma noite na suíte do Motel Cafofo do Créu; 3º Prêmio – uma inacreditável Brasília azul ano 72 (equipada com volante de pau, rodas com carlotas de magnésio, teto suvinil; banco inclinável e um super som, com um tuíster e dois autofalanges); 2º Prêmio – um ferro elétrico Borel (feita no morro que dá nome à marca); 1º prêmio – um liquidificador Valita (com v mesmo).
Em um primeiro instante, achei um pouco estranho o carro ser somente o terceiro prêmio, mas não pensei duas vezes e coloquei as duas pratas (valor único) no balcão do bar do seu Senta, o idealizador da rifa. O resultado do esperado concurso não sairia pela Loteria Federal e sim numa popular mão no saco que rolaria nas dependências do estabelecimento.
No dia do evento, mal pude acreditar quando a bicha velh, quer dizer, seu Senta gritou meu nome como vencedor do terceiro prêmio. A multidão, eufórica, me carregou em triunfo pelo quarteirão (o mais feliz era seu Belarmino, um ex-escravo de 118 anos que iria levar a jovem esposa, de 87, para passar uma noite de luxúria no Cafofo do Créu).
Dois dias depois do sorteio da rifa, seu Vasco (dono da pensão onde eu morava), bateu na porta do meu quarto para me avisar que um cara tinha deixado um “troço azul de rodas” para mim em frente ao estabelecimento. Estranhei o recado, mas algo me dizia que poderia ser meu prêmio. Desci correndo as escadas e dei de cara com o possante. Por alguns segundos, fiquei parado diante daquela visão. Aí, então, pude entender a expressão INACREDITÁVEL que estava no anúncio para descrever aquele carro (carro?). Depois de uns 20 minutos tentando abrir a porta do lado do motorista,.finalmente consegui entrar em meu tão esperado prêmio. Ao sentar no banco, o encosto caiu, o que me permitiu um rolamento para a parte de trás. Devido à velocidade do movimento, não pude evitar ficar entalado, com as pernas encostadas no teto e meu nariz colado ao umbigo. A posição desconfortável me permitiu reparar (com o canto do olho) que o carro tinha uma espécie de teto solar: um buraco de cerca de 30 centímetros que proporcionava uma encantadora visão do céu de Santa Cruz. Com a ajuda de alguns amáveis pedestres, consegui sair daquela situação ridícula. Já com o banco devidamente preso com três voltas de barbante, pude me sentar, não tão confortavelmente como imaginava (ficava um pouco tombado para a direita). Pendurada no retrovisor havia uma bola de gude, que depois eu descobriria ser uma peça totalmente dispensável: Claro que nas laterais não havia espelhos, assim como não existia botão algum no super som. Uma coisa, no entanto, tenho de reconhecer: o volume do aparelho era alto pra cacete (pena que o dial ficou fixo na Rádio Relógio). Ah, já ia me esquecendo do estofamento: Não me refiro ao visual, mas ao aroma (certamente o antigo proprietário era pescador e vendia os peixes dentro do carro mesmo).Tomado de uma coragem própria dos super-heróis, resolvi estrear o carro e dar uma volta no bairro. Ao ligar o veículo, houve uma explosão tão forte, que pôde ser ouvida em vários bairros vizinhos. Felizmente, os estragos não atingiram meu automóvel, mas parte da população teve prejuízos significativos (o pai de seu Vasco tomou um susto tão grande que engoliu o copo de cana que estava bebendo). Com a Brasília “despertada”, engatei a primeira para dar início ao meu passeio de reconhecimento, mas houve novo imprevisto: o câmbio ficou na minha mão. Ligeiro como um raio, coloquei a peça de volta e pisei fundo. A bolinha de gude que pendia do retrovisor se fez presente; com uma velocidade impressionante, veio direto na minha testa, que ostentou um parrudo galo durante uns três dias. Arranquei aquela porcaria do espelho e zuni pela janela. Com muito cuidado, engatei a segunda. A criança resistiu bonito. Fui para a terceira marcha, e o carro seguia sem se desmontar. Destemido e cheio de marra, engatei a quarta e, segurando a porta para ela não abrir, consegui passar um garotinho que andava de bicicleta na calçada. Pronto, tinha início a história da valente Brasília azul, que para alguns pode ser o Spidermóvel, mas para mim será o eterno The Blue Thunder.