sexta-feira, 17 de maio de 2013

Capítulo 26 - Não estamos sós



Muitos devem se lembrar do episódio que passei na Casa da Mãe Candinha (capítulo 16). Aquilo apenas fortaleceu o cagaço que sempre tive de coisas referentes ao além e adjacências. Como autêntico super herói, não tenho medo de nada vivo (exceto, claro, algumas baratas parrudas, Cleitoválter e Tunim Podridão), mas o que já passou dessa pra melhor realmente tira um pouco o meu foco e não me traz boas recordações, como contarei a seguir.
 
Irajá era um amigo de bar, parceiro mesmo, daqueles que não te deixava sozinho em momento algum da esbórnia. Manguaçado ao cubo, era sempre o último a sair, devidamente carregado pra fora do Salum Briga e deixado sempre estirado na porta de casa. Era querido por todos, até pelos animais. A alegria da cachorrada do bairro, que lambia freneticamente os córneos daquele fiel pudim de cachaça. Cãezinhos de outras localidades também vinham fazer a festa. Alguns até mijavam nele. Até que um dia uma fatalidade pôs fim ao meu amigo. Na realidade, apenas se cumpriu a antevisão de sua sábia mãe, que profeticamente escolheu o nome: Irajá. E ele foi.

Como acontecia um dia sim e o outro também, meu velho companheiro, após beber até a água do aquário que ficava no balcão (os quatro peixinho coloridos e a bolinha de gude que os moleques jogaram lá dentro foram junto), foi retirado do bar por Joca Pivara, atendente do boteco, e que naquele dia foi um completo irresponsável em sua missão. Deu no que deu. Ao avistar Solange Mustangue, uma mulata de parar o trânsito que trabalhava de babá na casa de Gregório Chapeleta, servindo de ama-seca para o pequeno Jeremias, de um aninho (dizem as más línguas que os irmãos Sandoval, de 15, Alípio, de 17, os gêmeos Dorival e Dovaril, de 22, e o próprio Chapeleta caíam também nos peitos daquele Mustangue turbinado), Joca largou Irajá de qualquer jeito no chão e disparou atrás de Solange. Meu querido amigo foi deixado de cara pro cimento e bunda pra lua. Como acontecia em todas as noites, lá veio a cachorrada, e, ao que tudo indica, um dos cães mais animados puxou as calças já frouxas de Irajá e dividiu a indumentária com os demais amiguinhos, deixando meu colega e suas desprotegidas nádegas expostas ao Deus dará. Mas quis o destino que, impressionantemente excitado após ser desprezado pela eguinha Pocotó, Luis Ignácio (o jegue que servia de locomoção para padre Loxa) fugisse naquela mesma noite do terreno baldio da paróquia e fosse ao encontro de Irajá e sua bunda desamparada. Ao avistar aquele busanfã branco e encachaçado, o jegue (que, segundo testemunhas, chegou a lamber os beiços) partiu feroz para saciar o clamor de sua virilidade. E Irajá morreu.

A comoção foi geral. Em homenagem ao passamento do intrépido cliente, seu Vasco decidiu eternizar a mesa 10, colocando a placa “O Salum Briga reverencia o nosso Pudim de Ouro” e decretou luto oficial de três dias.

Por questões de fluxo excessivo (foram 36 velórios seguidos), o enterro foi marcado excepcionalmente para as 22 horas do dia seguinte. A cerimônia anterior seria às 17, mas como o “encomendador” da alma era Joca Metralha (que demorava coisa de dez minutos pra falar “oi”), a do Irajá foi empurrada pra cinco horas mais tarde.
Emocionado, cheguei ao último encontro com meu amigo vinte minutos antes do horário marcado e, para o meu espanto, a única pessoa que avistei na sala foi justamente o “anfitrião”, enrolado com a bandeira do bloco “Segura que eu Chupo” e já devidamente acomodado no caixão. Me aproximei para uma última conversa com meu amigo. Mas arrepiou legal quando olhei pra Irajá. Ele estava com os olhos esbugalhados, vesgo e com a boca aberta, parecendo que ia gritar. Essa foi sua a última expressão na vida, que se foi no exato momento da impiedosa perfuração feita pelo jegue Luiz Ignácio.

Refeito do susto, comecei a conversar com meu velho parceiro, quando surgiu um ruído fino, que foi aumentando de volume. Aquele som era apavorante e inconfundível: um pum. Foi um peido de aproximadamente dez segundos de duração. Olhei para Irajá que, felizmente, se mantinha imóvel no caixão. Naquele salão imenso, eu não avistava mais ninguém, somente o defunto. Sabia que não tinha sido eu, e só sobrava Irajá. Ainda peguei a mão do meu amigo (gelada que nem a porra) pra ver se estava amarela, mas a bicha tava branquinha feito vela. Mal tive tempo de iniciar uma reflexão, porque subiu uma murrinha desgraçada. Um fedor impressionante tomou conta do recinto. Tonto e vendo tudo embaçado, tentei me segurar numa das alças do caixão pra não cair, mas foi em vão. Fui perdendo os sentidos e, com flashes sobre momentos da minha vida, arriando lentamente. Deitado no chão, buscando ar para tentar não fazer companhia a Irajá, abri os olhos marejados e, mesmo com a visão prejudicada pelo desfalecimento, visualizei a explicação para tal fenômeno, que nada tinha de mediúnico. O responsável por aquele pum maldito não fora Irajá nem algum fantasma porcalhão. De terno e gravata, igualzinho a um noivo de bolo, anão Carlos (que chegara ao velório antes mesmo que o morto e "aparecera" no salão depois de passar duas horas tentando, sem sucesso, cagar no banheiro dos funcionários) me revelou: não tô legal, Spider. Deve ser o cozido.

Capítulo 25 - Viagem Inesquecível (parte 2)


Guiando um carrinho de supermercado, a aerovelha passava de banco em banco para oferecer o lanche, que era um pão com ovo, um copo de refresco de caju (quente) e uma mariola pra sobremesa. Ao chegar na vez de Tunim Podridão, o paquiderme, guloso que nem a porra, pegou logo oito pães e já saiu matando. Eu peguei o meu kit e também tratei de comer logo antes que Podridão transformasse meu pãozinho com ovo em presa. Depois de lanchar, resolvi ir até a tripulação pra tirar umas dúvidas sobre o trajeto. Quando abri a porta da cabine, vi o negão pilotando só com o braço direito, porque o esquerdo tava pra fora da janela, com sua mão segurando um cigarro. Os dois assistentes disputavam uma animada partida de purrinha (palitinho, dependendo da região). Nada disso, porém, me impressionou mais do que a imagem que vi sobre painel de controle: uma garrafa aberta de cachaça (a Fogo no Rabo)...praticamente vazia. Instintivamente, olhei em direção ao retrovisor que tanto estranhei no início e pude ver o olhar perdido do piloto: os olhos do negão eram duas bilhas tão vermelhas que parecia ter usado groselha como colírio. Bem, claro que depois disso só me restou voltar para o meu lugar e chorar muito, pois realmente senti que o fim estava próximo.

Depois de uns cinco minutos de um pranto que parecia incontrolável percebi que as emoções estavam só começando, pois ouço a voz de Tunim: “Cocô! Tunim qué cocô!”. Apesar de atordoado com o desfecho iminente, eu não estava surdo. Aquela criatura queria cagar e, pela expressão contraída, seria ali mesmo. Lembrei dos oito pães com ovo abatidos e, logo após o grito desesperado que dei, agarrei a cabeça de Podridão e, olhando bem dentro de seus olhos, supliquei: “Não, Tunim! Cocô, banheiro! Cocô, banheiro!” Graças ao bom Deus, Podridão teve piedade de nossas almas e se levantou, caminhando lentamente em direção ao toalete. Bom, acho que não preciso dizer que ele teve de entrar de ré, pois, por ser literalmente maior que a casinha, não teria como se virar caso entrasse de frente. A cena de Podridão sentando no vaso antes de fechar a porta foi a certeza de que a vida não tinha mais sentido pra mim. Acomodado em meu banco, olhei a corda de segurança e pensei em me enforcar, mas um cheiro inacreditável passou a tomar conta do ambiente e me desconcentrou. Percebi que, após aqueles vinte minutos que pareceram vinte segundos, Podridão caminhava de volta à poltrona, enquanto uma correria louca acontecia nos últimos lugares, deixando deserta a parte próxima ao banheiro. O ocorrido foi que aquele desgraçado despejou o que restou dos pães com ovo, dos copos de refresco quente de caju e das dezenas de mariolas no vaso sanitário, tudo em forma de merda. Os poucos segundos de porta aberta para Podridão sair do banheiro já foram suficientes para instalar o caos na aeronave. Para completar aquele cenário de sucursal do inferno, o avião não tinha ar condicionado e sim um ventilador de teto que não dava vazão. Foram novos momentos de pânico, que levaram o Bispo Juvenal (criador da Igreja Universal do Juvenal) a sugerir um suicídio coletivo. Os interessados colocariam cinquentinha num envelope pras despesas do translado da alma pro céu. Graças a Deus, um dos co-pilotos apareceu correndo com um lança-chamas e desinfetou o local com jatos de desodorante Avanço.

Dispensável dizer que, após os trabalhos intensos de Podridão, o banheiro do avião estava interditado para todo o sempre, passando a fazer sentido os penicos que integravam o kit-viagem. A aerovelha comunicou a todos que seria impossível usar a casinha devido ao estado lamentável deixado por Podridão. Eu imaginava que, após o aviso, ninguém corresse mais riscos, mas em um dado momento pude ver Bartholomeu Bonifácio, no alto de seus 132 anos, caminhando lentamente, porém determinado, em direção ao banheiro. Seu Bartholomeu era uma figura lendária em Quissamanduca, amigo de personagens ilustres da história do Brasil. Nascido em Portugal, veio ainda criança para o Rio de Janeiro. Aliás, Bartholomeu não é o nome verdadeiro do velho. Seu pai era um militante radical do partido comunista em Lisboa e resolveu registrá-lo como Bartholonosso, que dava um ar mais socialista. No entanto, com dois dias na Cidade Maravilhosa o nome verdadeiro caiu, e Bartholonosso passou a ser Bartholomeu. Em sua infância no Rio ele empinou pipa com Pedro II, pixava os muros com Zumbi dos Palmares, deu uns amassos na Anita Garibaldi e foi sacristão assistente do Frei Caneca. Na adolescência esteve na I Guerra Mundial defendendo seu país, quando ficou surdo depois de querer examinar se o canhão que carregava estava funcionando (ele colocou a orelha direita próxima à boca do canhão, e descobriu que estava funcionado). Namorador incorrigível, seu Bartholomeu até protagonizou um escândalo na época, quando foi acusado de pedofilia por, secundo denúncias, ter vivido um tórrido romance com uma mocinha “dimenor” que se tornaria atriz famosa anos depois, a Dercy Gonçalves. Temendo maiores presálias devido aos  inconsequentes atos libidinosos com a então pitéu, deixou as praias cariocas e foi se esconder em Quissa.

Mas, voltando ao avião, seu Bartholomeu, surdo que nem um pedaço de pau oco, não ouviu o aviso desesperado que a aerovelha nos fizera, e seguia firme rumo ao banheiro interditado, apertando o bilau com toda força pra não se mijar. Inclusive, segundo testemunhas, ele começara a andar em direção à casinha antes mesmo de Podridão chacoalhar o local, mas, pelo avançado da idade, estava chegando próximo à porta coisa de quase uma hora depois de sua partida. Apesar de toda rapidez super-heroica de movimentos, não consegui chegar a tempo de impedir que seu Bartholomeu entrasse no banheiro. E, o que era pior, ele se trancou. Quando cheguei, imediatamente coloquei um de meus ouvidos na porta e o que pude ouvir precariamente foi uma expressão abafada, porém meio desesperada, algo como “pulga que partiu e filho da fruta”, seguido de um barulho seco, como algo indo ao chão. Os momentos que se seguiram foram dramáticos. Uns tentavam arrombar a entrada para resgatá-lo com vida, outros rezavam com as mãos dadas já encomendando a alma do velho. Claro, Bispo Juvenal já estava na área e pedia cinco pratas dos fiéis para, representando seu Bartholomeu, pagar o pedágio pro Céu. Mesmo sem minha roupa de Spider, eu tinha de usar alguns de meus poderes para tirar o velho daquela situação. Sem perder tempo, coloquei minha mão direita na maçaneta, a perna esquerda na parede ao lado da porta e, com toda minha força descomunal, puxei de uma vez. Como mencionei anteriormente, aquele esboço de avião foi “construído” nas coxas, logo, é dispensável dizer que as peças não eram da melhor qualidade. Portanto, com meu movimento de puxar com tudo, a maçaneta veio junto, e nós (maçaneta e eu) formos parar na cabine da tripulação. No meio do caminho, encontramos a aerovelha, que tentou me segurar e veio com a gente. Depois de se recuperar do impacto, o negão que pilotava (que foi apresentado como comandante Tião), conseguiu sair de dentro do painel e, com a destreza de antes. voltar a guiar a aeronave. Com a ajuda dos co-pilotos, consegui tirar a maçaneta da boca da aerovelha que, lamentavelmente, perdeu os seis dentes que restavam. Após salvar a simpática senhora, parti veloz para resgatar seu Bartholomeu. Em frente ao banheiro, doutor Mento de Assis, o médico mais conceituado de Quissamanduca, sentenciou: “Pelo tempo que tá lá dentro, o velho já era!”. Realmente eu não podia esperar mais. Dei alguns passos para trás e parti feroz para um golpe de artes marciais que aprendi com meu mestre e guru Chim-Pan-Zé. Varejei a porta, meti os córneos na caixa da descarga e caí de costas em cima de seu Bartholomeu. Ao reparar o coroa imóvel embaixo de mim, pensei no ato que fosse tarde demais. Desesperado, peguei o rosto de seu Barthô e tentei reanimá-lo dando umas tapas na orelha. De repente, o olho direito do velho se abre trêmulo e ele, num esforço hercúleo, suplica pausadamente: pe-lo a-mor de De-ussss (pausa longa)! Me ti-ra da-qui! A missão de um super-herói é árdua e penosa, não pode haver obstáculos que impeçam a salvação de uma pessoa em perigo, nem mesmo aquele cheiro desgraçado que sufocava até a alma, doida pra se desprender do corpo e vazar daquele banheiro maldito. Coloquei o velho no colo e, dando um grito que mesclava esforço e desespero, me impulsionei para fora, para delírio dos passageiros que vibraram ao perceber que seu Bartholomeu estava vivo. Após o salvamento, o banheiro foi definitivamente interditado, com um saco preto tampando o rombo na porta deixado por mim.

A viagem parecia voltar ao normal, quando a aerovelha anunciou que o jantar seria servido. Já refeito dos minutos intermináveis vividos dentro daquele banheiro do inferno (fiquei meia-hora no balão de oxigênio), encarei a notícia sobre o rango como uma ótima, pois eu estava mesmo cheio de fome. O carrinho foi passando, e cada passageiro pegando seu prato, até chegar minha vez e, simultaneamente, a de Tunim, sentado ao meu lado. Recebemos nossos pratos de alumínio e, ao retirar a tampa, vi que era sopa. O desafio agora seria tomar sopa em um avião que parecia um ancião com Mal de Parkson, de tanto que tremia.

Enquanto eu arquitetava um plano para encarar a janta, Tunin se mostrava totalmente refeito da “ligeira” indisposição intestinal, pois, sem a menor cerimônia, colocou o prato na boca e, de uma vez, virou toda a sopa pra dentro. Antes mesmo que a aerovelha conseguisse empurrar o carrinho para oferecer a refeição para o passageiro sentado à nossa frente, aquele mamute do mangue pegou mais seis pratos e empilhou em seu colo. Admito que aquela sequência de prato a prato sendo bebido em questão se segundos foi impressionante. Eu nem havia pego minha colher e Tunin já se fartara com os sete pratos de sopa de cebola acompanhada com rodelas de pimentões. Naquele instante aprendi uma lição para a vida inteira. Percebi que até um ser retardado como Tunin Podridão é capaz de ensinar algo. Explico: ao utilizar sua “técnica”, Tunin foi o único que conseguiu tomar a sopa. O avião sacudia tanto, que foi realmente impossível que qualquer um de nós normais (ou quase) pudesse abocanhar uma colherada sequer. Seu Bartholomeu, coitado, tinha sopa na testa, nas sobrancelhas, nos cabelos, no pescoço, mas pra dentro, nada.

E o avião chacoalhava, a sopa na pança de Tunin também, e mais uma lição aprendi em seguida, agora de efeito bélico: ao misturar cebola e pimentão em uma sopa e agitar tal combinação em um recipiente como a barriga daquele animal, cria-se uma munição devastadora, capaz de transformar os armamentos mais pesados dos traficantes dos morros do Rio em brinquedinho de criança. Consegui ver bem o momento em que o arroto foi se formando. Um barulho como o de uma descarga sem água e o olhar perdido de Tunin eram a certeza de que algo extraordinário estava por acontecer. Mas antes, é necessário lembrar a todos a definição literal da palavra arroto: “erupção ruidosa de gases advindos do estômago”. Minha gente, ao abrir a boca, aquele filho do cão produziu o som mais terrível que ouvi na vida. Além de assustadoramente alto (quebrou pelo menos umas dez janelas do avião), o arroto foi impressionantemente longo (por baixo, um minuto). Mas o mais aterrorizante foi a rodela de pimentão que partiu das entranhas de Podridão. Como os movimentos sincronizados que os espectadores fazem acompanhando a bolinha durante uma partida de tênis, todos os passageiros daquele avião do inferno seguiram com os olhos a trajetória do projétil catapultado da boca de Tunin Podridão. O tempo parecia em slow motion. Assustados, todos acompanhavam dramaticamente (me lembro bem de uma pobre vozinha abraçando os netinhos de olhos arregalados). A viagem do legume voador só terminou quando se chocou violentamente com a parede que protegia a cabine dos tripulantes. O desfecho foi ainda mais impressionante: a rodela do pimentão grudada na parede e já em adiantado estado de putrefação. Após aquele momento interminável, as reações foram as mais diversas. Enquanto uns choravam desesperados, outros aplaudiam aliviados por ainda estarem vivos.  Em seguida, mais um co-piloto entrou em ação. Agora para tentar retirar a rodela de pimentão da parede. A bicha tava grudada, e o bravo tripulante, munido de uma espátula e um martelo, conseguiu, após muito sacrifício, concluir sua missão, porém levando junto um bom pedaço da parede.

Graças a Deus, este foi o último momento dramático que vivemos naquela viagem, que terminaria em poucos minutos, pois já estávamos bem próximo de nosso destino final, o aeroporto Santo Abílio da Moringa, em Piriri do Pororó. Mas antes que aterrissássemos, no entanto, Frei Natanael, sempre zeloso ao sacerdócio, protagonizou um belo instante ecumênico. Equipado com uma bacia cheia d’água e uma toalha, rebatizou nosso herói, que daquele dia em diante passou a ser chamado de Tunin Vulcão.

Capítulo 24 - Viagem Inesquecível (parte 1)



Aos meus queridos admiradores e seguidores, gostaria de registrar, antes de retomar a detalhada narrativa de minha saga de herói, que, apesar de meus poderes espetaculares e minha irresistível sensualidade, sou uma pessoa praticamente normal, portanto com certas inseguranças inerentes ao ser humano. E é justamente a uma delas que reservo o capítulo de hoje, o 24, o qual homenageio um antigo colega da imbatível Liga da Justiça, o Batman, que era carinhosamente por nós chamado de Morcega Danada.

Como mencionei na introdução, alguns receios fazem parte da característica humana, e não vejo problema algum revelar um trauma que adquiri quando vivia em Quissamanduca e ainda não era o mundialmente conhecido e desejado Spider-Man: voar de avião.

Antes que alguns de vocês me julguem precipitadamente, revelarei os terríveis motivos que tornaram esse importante meio de transporte impossível de ser agora utilizado por minha pessoa.

Como sabem, Quissa era uma cidade pequena e com algumas dificuldades, porém com o orgulho de possuir um aeroporto, obra do então prefeito Gumercindo Pangaré (o anterior, Cornildo Manso, que estava no poder havia mais de vinte anos, renunciou após denúncias de seu envolvimento no escândalo do superfaturamento na exportação de calangos para o Sudão Setentrional). O respeitado político, que era dono de uma boate erótica muito concorrida, a Boketis, sabia que a benfeitoria de nada adiantaria se não houvesse também um avião para atender nossa exigente população. Sendo assim, ele mandou construir uma aeronave para fazer a escala Quissamanduca-Piriri do Pororó, mais próxima cidade que possuía uma pista para aterrissagem (na realidade um campo de terra batida onde a molecada jogava sua bolinha). A inauguração de nosso aeroporto precisava ser um evento de grandes proporções e, para tal, Gumercindo Pangaré convocou todos os moradores para participar. Buscando prestigiar os quissamanduquenses, Pangaré decidiu sortear 49 passagens de ida e volta, o que criaria igual número de contemplados para integrarem o primeiro voo no Aeroporto Internacional Seu Carlinhos, nome dado em homenagem ao dono do ferro velho da cidade e responsável pela construção e retífica do referido avião. Aliás, avião não seria bem o termo adequado para definir a peça, mas isso veremos daqui a pouquinho.

Bem, para tornar o mais justo possível o sorteio das passagens, o prefeito oficializou um bingo, e os quarenta e nove primeiros a completar as cartelas seriam os agraciados, juntando-se aos onze convidados especiais: o próprio Pangaré, sua esposa, as três filhas, seu gato Borrão, a empregada Valdirene (uma mulata espetacular que as más línguas diziam ser amante do mandatário), Frei Natanael, Pai Dondinho do Balacubaco (o prefeito se dizia católico, mas toda segunda, quarta e sexta batia tambor no terreiro do Bala), Decinho (tataraneto de Décio Pinto Aquino Rego, o Visconde do Piriri do Pororó) e seu Carlinhos. A cada cartela completada, um verdadeiro alvoroço surgia para comemorar a vitória do sortudo premiado. Para a minha ingênua felicidade, fui o 34º a completar e, após o anúncio, erguido em triunfo pela multidão que se espremia na Praça Apolônio III. Após quatro horas de acirrada disputa, finalmente foram conhecidos os 49, e eu, infelizmente, estava entre eles.

Os vencedores receberam seus bilhetes devidamente numerados e se enfileiraram diante de um gigantesco pano preto que escondia a aeronave que inauguraria o Aeroporto Internacional Seu Carlinhos. Após a execução do Hino Nacional pela briosa banda da cidade, a primeira dama, dona Petrina Pangaré, cortou o laço e o imenso pano preto caiu, dando-nos a visão do objeto que iria nos transportar pelo céu. No primeiro instante, o que se ouviu foi uma absoluta reação de espanto: Ooooooohhhhhh!!!!!!!!! Logo em seguida, no entanto, a sensação causada pelo semblante reluzente do avião passou a ser outra: Iiiiiiihhhhhhh!!!!! As janelas pareciam as de ônibus urbano, as laterais também, assim como toda a fuselagem. Era como se dois ônibus tivessem sido juntados e recebidos os reforços de uma grande asa quase no centro, com mais uma menor na parte posterior. Próximo à cabine do piloto havia a imagem de um calango alado com os dizeres “Deus me Guia” e logo abaixo da asinha de trás, a identificação da aeronave: 171. Das quarenta e nove pessoas “agraciadas” com as passagens, mais da metade quis desistir da viagem, inclusive eu. Atento à reação, Gumercindo Pangaré rapidamente pegou o microfone, mas levou um choque tão grande que arremessou o equipamento longe, acertando a última janela do avião. O buraco resultante do impacto permitia a passagem de uma baleia orca. Na mesma hora, Pangaré usou toda sua autoridade como principal dirigente da cidade e ordenou: “Seu Carlinhos, dá um jeito nisso!”. O empresário (vamos chamá-lo assim) foi ao seu empreendimento e retornou em seguida com um rolo de fita isolante e os classificados do Jornal Quissa News. Acompanhado de seu ajudante Juruna (um indiozinho que passou a viver na cidade), seu Carlinhos subiu a escada armada por seu empregado (que a segurava firmemente), esticou o caderno de classificados do jornal e o fixou com a fita isolante em torno de toda a área da janela atingida. Após o serviço, desceu lentamente a escada e mandou pro prefeito: “Pronto! Agora é só mandar o povo entrar!”.

Depois dessa demonstração de perícia e habilidade de seu Carlinhos, pudemos ser apresentados à comissária de bordo, uma senhora que mal conseguia ficar em pé e devia ter, na boa, quase cem anos. Com o rosto coberto de pó de arroz, a velha abriu um sorriso e, sob forte esforço, convidou os passageiros a ingressarem na aeronave. Um a um, fomos subindo a escada que conduzia ao avião, o que já era um alerta do que estava por vir. A escada era de ferro e sacudia geral, parecendo que iria se decompor a qualquer instante. Consegui chegar ao último degrau e entreguei meu bilhete à comissária que, pela experiência e agilidade, certamente integrou a equipe do 14 Bis. Ao entrar no avião, não pude deixar de reparar que a cabine do piloto estava aberta. Foi quando vi um pôster do Vasco logo acima do painel e uma chupeta pendurada no espelho do retrovisor. Em fração de segundos, tentei imaginar a serventia daquele retrovisor, mas como não encontrava explicação plausível, resolvi buscar meu lugar e me acomodar na aeronave. Olhei para o salão e avistei duas colunas de bancos, iguaizinhos aos de um ônibus. Ao todo eram duas fileiras de um lado e outras duas do outro. Meu assento era o número 51, na janela, mas lá atrás, quase colado ao banheiro. Resoluto, segui em frente até encontrar meu lugar. Ao sentar, esbarrei um de meus pés em algo que estava no chão e então pude reparar se tratar de um penico com a seguinte instrução: “Favor não levar pra casa”. Estranhei aquele artefato e perguntei à aerovelha o objetivo daquilo. Para minha surpresa, ela me respondeu dizendo se tratar de uma alternativa para aqueles que preferissem não usar o banheiro. Confesso que achei graça e me perguntei quem em sã consciência preferiria um pinico a um banheiro. Minha ingenuidade, no entanto, estava com as horas contadas, pois logo eu saberia o quão eficaz seria aquele objeto de plástico. Ainda faltavam alguns passageiros quando, inadvertidamente, pude ver pela janela o piloto se aproximando da escada. Era um negão dono de uma barriga gigantesca e trajando uma camisa azul clara (com um rasgo de coisa de um palmo na altura da axila direita) e calça azul escura (esta com as pernas arregaçadas até as canelas). Devido à falta de um dos botões da camisa, dava pra ver o umbigo do sujeito, que mais parecia um olho. Com um jornal debaixo do suvaco arejado, o condutor da aeronave segurava uma laranja com a mão direita e chupava a bicha com uma voracidade que parecia comer até o bagaço.

Bem, quase todos estavam a bordo, faltando apenas dois lugares, um mais ou menos no meio e outro justamente ao meu lado (na janela com os classificados do Quissa News, ficou Joca Metralha, um gaguinho que trabalhava como atendente na Companhia Telefônica e depois foi ser meu visinho no Rio). Naquele instante, surge a visão de Rosemeire Maria, uma loirinha linda, certamente sonho de consumo de toda parte masculina que habitava a região. Meu coração disparou. Senti que o destino entrava em ação novamente e aquela viagem representaria o início de um romance avassalador. Minha virilidade se fez presente naquele momento, ainda mais pujante devido aos quatro sacos de amendoins com casca que tinha comido de café da manhã. Mas meu feeling foi pro brejo (e a virilidade idem) assim que Rosemeire conferiu o número do bilhete e se sentou na cadeira vaga no meio do recinto. Eu ainda me recuperava da decepção quando o local todo começou a balançar, fazendo parecer que estávamos num navio e não num avião. A luz apagava e acendia, e um fedor insuportável parecia vir de fora pra dentro, iniciando um clima de tensão e medo. De repente, da porta de entrada se impõe a razão de tamanho descontrole. E põe tamanho nisso: Tunim Podridão. Uma criatura de quase trezentos quilos que habitava (é, porque aquilo não podia morar em lugar nenhum) próximo ao lixão da cidade e por isso, e outras razões, era conhecido pelo inacreditável bodum que exalava de cada um dos miseráveis poros de seu corpo (as axilas, pescoço, pés e dobrinhas eram as regiões mais comprometidas). Sua fama atingiu proporções internacionais, a ponto de um grupo de quatro cientistas japoneses tentar fazer um estudo sobre ele, porém sem sucesso e retornar desfalcado imediatamente ao país do Sol Nascente pra nunca mais retornar à América do Sul. Explico: ao ser abordado pelos renomados estudiosos, Tunim ficou tenso e deixou escapar um punzinho de emoção, suficiente para terminar ali, e de forma trágica, a expedição. Professor Amassu Numuru desmaiou na hora e demorou oito dias para recobrar os sentidos, doutor Mijaru Namata pulou a janela e se jogou no precipício, pesquisador Miraru Nolhota sofreu um colapso emocional e vive em um manicômio em Tóquio e o quarto japa, o premiado cientista Kagaru Nascarssa, entrou em estado catatônico e até hoje não anda, não fala, não pisca e tem o olhar perdido em direção ao infinito. As características anti-higiênicas de Tunim Podridão também eram bem observadas em seus hábitos alimentares e comportamentais, o que o tornava ainda mais repugnante.

Bom, mas voltemos à viagem. Quando todos vimos a figura de Tunim surgindo, um princípio de pânico se instalou no avião. A indignação tomou conta do local, pois sabíamos que ele não participara do Bingo, e todos se perguntavam o que aquele hipopótamo podre estava fazendo ali. Naquele instante, o prefeito Gumercindo Pangaré se levantou e nos lembrou que se tratava de uma promessa que fizera durante sua campanha. Caso conseguisse dar à Quissamanduca seu primeiro avião, ele, em prova de gratidão a Deus, daria uma oportunidade de socialização a um cidadão excluído pela sociedade. Nesse momento, muitos se levantaram e começaram a linchar seu Carlinhos, responsável pela construção da aeronave (um dos mais exaltados entre os agressores era Frei Natanael). Depois da ação da turma do deixa-disso, todos voltaram suas atenções para a figura de Tunim. Foi exatamente nessa hora que me liguei que o único assento disponível era justamente o que estava ao meu lado. Um desespero absoluto começou a tomar conta de minha alma enquanto meus olhos se deparavam com a imagem daquela figura medonha vindo na minha direção. Após uns dez segundos de letargia, tentei fugir do local, mas era tarde demais. Podridão já estava em movimento de desabamento, ou melhor, de sentar, o que se efetivou em seguida. Bom, desnecessário dizer que, com o impacto do corpo daquela criatura, fui esmagado contra a lateral do avião. Meu rosto ficou grudado no vidro da janela e meu peito sobre meu braço direito, ambos colados, feito mata-borrão, na parede da aeronave. Meu braço esquerdo foi parar nas costas de Podridão que, simplesmente, não notou minha presença. Devido ao peso daquela carcaça contra o meu corpo, eu não podia respirar, muito menos pedir socorro, e o único som que conseguia emitir era um abafado grunhido desesperado por ajuda. Deus é bom demais, pois permitiu que eu ficasse naquela situação só por uma meia hora.

Quando consegui me recompor, ouvi um apito e em seguida um grito vindo da pista: “Pode subir!” Esse era o aviso de que a aeronave estava liberada pra decolar. Então, o motorista do avião (é, porque aquela pessoa não podia ser denominada de piloto) se dirige aos passageiros e manda: “Vamo nessa”. Em seguida, a aerovelha nos passou as recomendações, pedindo que “amarrássemos” os cintos de segurança. Busquei o tal cinto, mas o que encontrei foi uma corda presa à poltrona, que na realidade era um banco de ônibus. Daí o “amarrássemos” passou a fazer sentido. Logicamente, as instruções não eram estendidas a Tunim. Primeiro porque o tamanho da corda não era suficiente pra ele e segundo porque o peso daquele mamute por si só já o fixava na poltrona.

De repente, o avião começou a sacudir, parecia que ia desintegrar o puto, e a se mover lentamente. Aos poucos, foi ganhando velocidade, e à medida que avançava, mais sacudia. A situação, que já era crítica, ganhou contornos insustentáveis de dramaticidade quando, da cabine da tripulação, pudemos ouvir o coro: “Pai nosso, que estais no céu, santificado...”. A tripulação rezava, e forte. Aí eu senti que a barra tinha pesado de verdade. Enquanto o povo gritava dentro do avião, eu me lembrava da minha infância em Quissamanduca e pedia perdão a Deus pelas balinhas de flambuesa (flambuesa mesmo porque eram falsificadas) que todo dia eu roubava do Cantuária, um ceguinho que vendia guloseimas na porta da nossa escola. Era sempre a mesma coisa: um vinha por trás e arriava as calças do Cantuária, enquanto eu e outros amigos pegávamos as balas de flambuesa e saíamos correndo. A gente se divertia muito, Cantuária nem tanto. Paramos com isso no dia em que, depois de arriar as calças do baleiro, Zeca Ramujo resolveu enfiar um morteiro no rabo do Cantuária que, depois de dois dias de buscas, foi encontrado na cidade vizinha de São João da Caraia, no alto da igreja, abraçado ao sino.

Mas voltando ao avião, enquanto eu acompanhava a tripulação e os demais passageiros na oração, o bicho começou a subir. Na hora me lembrei também da Montanha Russa do Parque Derme, nosso parque temático em Quissamanduca. O povo gritava temendo o pior. Num ato de fé e altruísmo, Frei Natanael, mesmo amarrado em seu banco, ministrava, já pra garantir, uma extremaunção coletiva, inclusive em Pai Dondinho que, abraçado a uma imagem de São Jorge, chorava feito criança. Enquanto a gritaria tomava conta da aeronave, dava pra gente ouvir o piloto pelas caixas de som presas no teto: “Ah, moleque!!!!” Quis Deus que aquele busum alado desafiasse e vencesse todas as leis racionais (as irracionais também) da gravidade e realmente começasse a voar. Após o susto da decolagem, todos conseguimos nos acalmar e iniciar a viagem.