Aos meus queridos admiradores e seguidores,
gostaria de registrar, antes de retomar a detalhada narrativa de minha saga de
herói, que, apesar de meus poderes espetaculares e minha irresistível
sensualidade, sou uma pessoa praticamente normal, portanto com certas
inseguranças inerentes ao ser humano. E é justamente a uma delas que reservo o
capítulo de hoje, o 24, o qual homenageio um antigo colega da imbatível Liga da
Justiça, o Batman, que era carinhosamente por nós chamado de Morcega Danada.
Como mencionei na introdução, alguns
receios fazem parte da característica humana, e não vejo problema algum revelar
um trauma que adquiri quando vivia em Quissamanduca e ainda não era o
mundialmente conhecido e desejado Spider-Man: voar de avião.
Antes que alguns de vocês me julguem
precipitadamente, revelarei os terríveis motivos que tornaram esse importante
meio de transporte impossível de ser agora utilizado por minha pessoa.
Como sabem, Quissa era uma cidade pequena e
com algumas dificuldades, porém com o orgulho de possuir um aeroporto, obra do
então prefeito Gumercindo Pangaré (o anterior, Cornildo Manso, que estava no
poder havia mais de vinte anos, renunciou após denúncias de seu envolvimento no
escândalo do superfaturamento na exportação de calangos para o Sudão
Setentrional). O respeitado político, que era dono de uma boate erótica muito
concorrida, a Boketis, sabia que a benfeitoria de nada adiantaria se não
houvesse também um avião para atender nossa exigente população. Sendo assim, ele
mandou construir uma aeronave para fazer a escala Quissamanduca-Piriri do
Pororó, mais próxima cidade que possuía uma pista para aterrissagem (na
realidade um campo de terra batida onde a molecada jogava sua bolinha). A
inauguração de nosso aeroporto precisava ser um evento de grandes proporções e,
para tal, Gumercindo Pangaré convocou todos os moradores para participar.
Buscando prestigiar os quissamanduquenses, Pangaré decidiu sortear 49 passagens
de ida e volta, o que criaria igual número de contemplados para integrarem o primeiro voo no Aeroporto Internacional Seu
Carlinhos, nome dado em homenagem ao dono do ferro velho da cidade e
responsável pela construção e retífica do referido avião. Aliás, avião não
seria bem o termo adequado para definir a peça, mas isso veremos daqui a pouquinho.
Bem, para tornar o mais justo possível o
sorteio das passagens, o prefeito oficializou um bingo, e os quarenta e nove
primeiros a completar as cartelas seriam os agraciados, juntando-se aos onze
convidados especiais: o próprio Pangaré, sua esposa, as três filhas, seu gato
Borrão, a empregada Valdirene (uma mulata espetacular que as más línguas diziam
ser amante do mandatário), Frei Natanael, Pai Dondinho do Balacubaco (o
prefeito se dizia católico, mas toda segunda, quarta e sexta batia tambor no terreiro
do Bala), Decinho (tataraneto de Décio Pinto Aquino Rego, o Visconde do
Piriri do Pororó) e seu Carlinhos. A cada cartela completada, um verdadeiro
alvoroço surgia para comemorar a vitória do sortudo premiado. Para a minha
ingênua felicidade, fui o 34º a completar e, após o anúncio, erguido em triunfo
pela multidão que se espremia na Praça Apolônio III. Após quatro horas de
acirrada disputa, finalmente foram conhecidos os 49, e eu, infelizmente, estava
entre eles.
Os vencedores receberam seus bilhetes
devidamente numerados e se enfileiraram diante de um gigantesco pano preto que
escondia a aeronave que inauguraria o Aeroporto Internacional Seu Carlinhos.
Após a execução do Hino Nacional pela briosa banda da cidade, a primeira dama,
dona Petrina Pangaré, cortou o laço e o imenso pano preto caiu, dando-nos a
visão do objeto que iria nos transportar pelo céu. No primeiro instante, o que
se ouviu foi uma absoluta reação de espanto: Ooooooohhhhhh!!!!!!!!! Logo em
seguida, no entanto, a sensação causada pelo semblante reluzente do avião
passou a ser outra: Iiiiiiihhhhhhh!!!!! As janelas pareciam as de ônibus
urbano, as laterais também, assim como toda a fuselagem. Era como se dois
ônibus tivessem sido juntados e recebidos os reforços de uma grande asa quase
no centro, com mais uma menor na parte posterior. Próximo à cabine do piloto
havia a imagem de um calango alado com os dizeres “Deus me Guia” e logo abaixo
da asinha de trás, a identificação da aeronave: 171. Das quarenta e nove
pessoas “agraciadas” com as passagens, mais da metade quis desistir da viagem,
inclusive eu. Atento à reação, Gumercindo Pangaré rapidamente pegou o
microfone, mas levou um choque tão grande que arremessou o equipamento longe,
acertando a última janela do avião. O buraco resultante do impacto permitia a
passagem de uma baleia orca. Na mesma hora, Pangaré usou toda sua autoridade
como principal dirigente da cidade e ordenou: “Seu Carlinhos, dá um jeito
nisso!”. O empresário (vamos chamá-lo assim) foi ao seu empreendimento e retornou
em seguida com um rolo de fita isolante e os classificados do Jornal Quissa
News. Acompanhado de seu ajudante Juruna (um indiozinho que passou a viver na
cidade), seu Carlinhos subiu a escada armada por seu empregado (que a segurava
firmemente), esticou o caderno de classificados do jornal e o fixou com a fita
isolante em torno de toda a área da janela atingida. Após o serviço, desceu
lentamente a escada e mandou pro prefeito: “Pronto! Agora é só mandar o povo
entrar!”.
Depois dessa demonstração de perícia e
habilidade de seu Carlinhos, pudemos ser apresentados à comissária de bordo,
uma senhora que mal conseguia ficar em pé e devia ter, na boa, quase cem anos.
Com o rosto coberto de pó de arroz, a velha abriu um sorriso e, sob forte
esforço, convidou os passageiros a ingressarem na aeronave. Um a um, fomos
subindo a escada que conduzia ao avião, o que já era um alerta do que estava
por vir. A escada era de ferro e sacudia geral, parecendo que iria se decompor
a qualquer instante. Consegui chegar ao último degrau e entreguei meu bilhete à comissária que, pela experiência e agilidade, certamente integrou a equipe do 14
Bis. Ao entrar no avião, não pude deixar de reparar que a cabine do piloto
estava aberta. Foi quando vi um pôster do Vasco logo acima do painel e
uma chupeta pendurada no espelho do retrovisor. Em fração de segundos, tentei
imaginar a serventia daquele retrovisor, mas como não encontrava explicação
plausível, resolvi buscar meu lugar e me acomodar na aeronave. Olhei para o
salão e avistei duas colunas de bancos, iguaizinhos aos de um ônibus. Ao todo
eram duas fileiras de um lado e outras duas do outro. Meu assento era o número 51,
na janela, mas lá atrás, quase colado ao banheiro. Resoluto, segui em frente
até encontrar meu lugar. Ao sentar, esbarrei um de meus pés em algo que estava
no chão e então pude reparar se tratar de um penico com a seguinte instrução:
“Favor não levar pra casa”. Estranhei aquele artefato e perguntei à aerovelha o
objetivo daquilo. Para minha surpresa, ela me respondeu dizendo se tratar de
uma alternativa para aqueles que preferissem não usar o banheiro. Confesso que
achei graça e me perguntei quem em sã consciência preferiria um pinico a um
banheiro. Minha ingenuidade, no entanto, estava com as horas contadas, pois logo
eu saberia o quão eficaz seria aquele objeto de plástico. Ainda faltavam alguns
passageiros quando, inadvertidamente, pude ver pela janela o piloto se
aproximando da escada. Era um negão dono de uma barriga gigantesca e trajando
uma camisa azul clara (com um rasgo de coisa de um palmo na altura da axila
direita) e calça azul escura (esta com as pernas arregaçadas até as canelas).
Devido à falta de um dos botões da camisa, dava pra ver o umbigo do sujeito,
que mais parecia um olho. Com um jornal debaixo do suvaco arejado, o
condutor da aeronave segurava uma laranja com a mão direita e chupava a bicha
com uma voracidade que parecia comer até o bagaço.
Bem, quase todos estavam a bordo, faltando
apenas dois lugares, um mais ou menos no meio e outro justamente ao meu lado
(na janela com os classificados do Quissa News, ficou Joca Metralha, um
gaguinho que trabalhava como atendente na Companhia Telefônica e depois foi ser meu visinho no Rio). Naquele
instante, surge a visão de Rosemeire Maria, uma loirinha linda, certamente sonho de consumo de toda parte masculina que habitava a região. Meu coração
disparou. Senti que o destino entrava em ação novamente e aquela viagem
representaria o início de um romance avassalador. Minha virilidade se fez
presente naquele momento, ainda mais pujante devido aos quatro sacos de
amendoins com casca que tinha comido de café da manhã. Mas meu feeling foi pro
brejo (e a virilidade idem) assim que Rosemeire conferiu o número do bilhete e
se sentou na cadeira vaga no meio do recinto. Eu ainda me recuperava da decepção
quando o local todo começou a balançar, fazendo parecer que estávamos num navio
e não num avião. A luz apagava e acendia, e um fedor insuportável parecia vir
de fora pra dentro, iniciando um clima de tensão e medo. De repente, da porta
de entrada se impõe a razão de tamanho descontrole. E põe tamanho nisso: Tunim
Podridão. Uma criatura de quase trezentos quilos que habitava (é, porque aquilo
não podia morar em lugar nenhum) próximo ao lixão da cidade e por isso, e
outras razões, era conhecido pelo inacreditável bodum que exalava de cada um
dos miseráveis poros de seu corpo (as axilas, pescoço, pés e dobrinhas eram as
regiões mais comprometidas). Sua fama atingiu proporções internacionais, a
ponto de um grupo de quatro cientistas japoneses tentar fazer um estudo sobre
ele, porém sem sucesso e retornar desfalcado imediatamente ao país do Sol
Nascente pra nunca mais retornar à América do Sul. Explico: ao ser abordado
pelos renomados estudiosos, Tunim ficou tenso e deixou escapar um punzinho de
emoção, suficiente para terminar ali, e de forma trágica, a expedição. Professor Amassu Numuru desmaiou na hora e demorou oito dias para recobrar os sentidos, doutor
Mijaru Namata pulou a janela e se jogou no precipício, pesquisador Miraru Nolhota
sofreu um colapso emocional e vive em um manicômio em Tóquio e o quarto japa, o premiado cientista Kagaru Nascarssa, entrou em estado catatônico e até hoje não anda, não
fala, não pisca e tem o olhar perdido em direção ao infinito. As
características anti-higiênicas de Tunim Podridão também eram bem observadas em
seus hábitos alimentares e comportamentais, o que o tornava ainda mais
repugnante.
Bom, mas voltemos à viagem. Quando todos
vimos a figura de Tunim surgindo, um princípio de pânico se instalou no avião.
A indignação tomou conta do local, pois sabíamos que ele não participara do Bingo,
e todos se perguntavam o que aquele hipopótamo podre estava fazendo ali.
Naquele instante, o prefeito Gumercindo Pangaré se levantou e nos lembrou que
se tratava de uma promessa que fizera durante sua campanha. Caso conseguisse
dar à Quissamanduca seu primeiro avião, ele, em prova de gratidão a Deus, daria
uma oportunidade de socialização a um cidadão excluído pela sociedade. Nesse
momento, muitos se levantaram e começaram a linchar seu Carlinhos, responsável
pela construção da aeronave (um dos mais exaltados entre os agressores era Frei
Natanael). Depois da ação da turma do deixa-disso, todos voltaram suas atenções
para a figura de Tunim. Foi exatamente nessa hora que me liguei que o único
assento disponível era justamente o que estava ao meu lado. Um desespero
absoluto começou a tomar conta de minha alma enquanto meus olhos se deparavam
com a imagem daquela figura medonha vindo na minha direção. Após uns dez
segundos de letargia, tentei fugir do local, mas era tarde demais. Podridão já
estava em movimento de desabamento, ou melhor, de sentar, o que se efetivou em
seguida. Bom, desnecessário dizer que, com o impacto do corpo daquela criatura,
fui esmagado contra a lateral do avião. Meu rosto ficou grudado no vidro da
janela e meu peito sobre meu braço direito, ambos colados, feito mata-borrão,
na parede da aeronave. Meu braço esquerdo foi parar nas costas de Podridão que,
simplesmente, não notou minha presença. Devido ao peso daquela carcaça contra o
meu corpo, eu não podia respirar, muito menos pedir socorro, e o único som que
conseguia emitir era um abafado grunhido desesperado por ajuda. Deus é bom
demais, pois permitiu que eu ficasse naquela situação só por uma meia hora.
Quando consegui me recompor, ouvi um apito
e em seguida um grito vindo da pista: “Pode subir!” Esse era o aviso de que a
aeronave estava liberada pra decolar. Então, o motorista do avião (é,
porque aquela pessoa não podia ser denominada de piloto) se dirige aos
passageiros e manda: “Vamo nessa”. Em seguida, a aerovelha nos passou as
recomendações, pedindo que “amarrássemos” os cintos de segurança. Busquei o tal
cinto, mas o que encontrei foi uma corda presa à poltrona, que na realidade era
um banco de ônibus. Daí o “amarrássemos” passou a fazer sentido. Logicamente, as
instruções não eram estendidas a Tunim. Primeiro porque o tamanho da corda não era
suficiente pra ele e segundo porque o peso daquele mamute por si só já o fixava
na poltrona.
De repente, o avião começou a sacudir,
parecia que ia desintegrar o puto, e a se mover lentamente. Aos poucos, foi
ganhando velocidade, e à medida que avançava, mais sacudia. A situação, que já
era crítica, ganhou contornos insustentáveis de dramaticidade quando, da cabine
da tripulação, pudemos ouvir o coro: “Pai nosso, que estais no céu, santificado...”.
A tripulação rezava, e forte. Aí eu senti que a barra tinha pesado de verdade.
Enquanto o povo gritava dentro do avião, eu me lembrava da minha infância em
Quissamanduca e pedia perdão a Deus pelas balinhas de flambuesa (flambuesa
mesmo porque eram falsificadas) que todo dia eu roubava do Cantuária, um
ceguinho que vendia guloseimas na porta da nossa escola. Era sempre a mesma
coisa: um vinha por trás e arriava as calças do Cantuária, enquanto eu e outros
amigos pegávamos as balas de flambuesa e saíamos correndo. A gente se divertia
muito, Cantuária nem tanto. Paramos com isso no dia em que, depois de arriar as
calças do baleiro, Zeca Ramujo resolveu enfiar um morteiro no rabo do Cantuária que,
depois de dois dias de buscas, foi encontrado na cidade vizinha de São João da
Caraia, no alto da igreja, abraçado ao sino.
Mas voltando ao avião, enquanto eu
acompanhava a tripulação e os demais passageiros na oração, o bicho começou a
subir. Na hora me lembrei também da Montanha Russa do Parque Derme, nosso
parque temático em Quissamanduca. O povo gritava temendo o pior. Num ato de fé
e altruísmo, Frei Natanael, mesmo amarrado em seu banco, ministrava, já pra
garantir, uma extremaunção coletiva, inclusive em Pai Dondinho que, abraçado a
uma imagem de São Jorge, chorava feito criança. Enquanto a gritaria tomava
conta da aeronave, dava pra gente ouvir o piloto pelas caixas de som presas no
teto: “Ah, moleque!!!!” Quis Deus que aquele busum alado desafiasse e vencesse
todas as leis racionais (as irracionais também) da gravidade e realmente
começasse a voar. Após o susto da decolagem, todos conseguimos nos acalmar e
iniciar a viagem.