A lembrança de Zoltan sendo linchado pelas crianças me fez recordar de Cleitoválter, filho de minha comadre Sebastiana, que era irmã da tia da avó da vizinha de seu Bionor Elha, um pacato velhinho que cuidava do maior puteiro de Quissamanduca, o Colossu Ruba. Cleitoválter era um menininho ruivinho, cheio de sardas, com carinha de anjo. Carinha, porque aquilo era o cão. O moleque foi expulso das três escolas que existiam em Quissa, sendo que chegou a sair algemado da primeira vez. E tinha só dois anos. Ele invadiu a sala da diretora da Escola Santa Eutanásia Malagueta, o estabelecimento de ensino mais tradicional da região, e tentou estuprar a madre superiora, freira Dolores, um velhinha de 89 anos. Após esse episódio rumoroso, Cleitoválter foi matriculado no Internato Dom Cabrito Numberra, mas permaneceu lá somente uma noite, pois no dia seguinte descobriram o cocô gigante que ele depositou sobre a mesa e, consequentemente, sobre a coleção de selos raros do diretor Olegário Borborema, que teve um ataque cardíaco e morreu ao ver o descomunal tolete repousando sobre seus amados selinhos. Concluindo a trajetória acadêmica, Cleitoválter foi conduzido (a expressão é essa mesma) ao Reformatório Saddam Hussein. Lá o moleque não teve vida boa e permaneceu por mais tempo: três dias. Numa áspera discussão com um interno, Clei se descontrolou: mordeu e arrancou um das orelhas do colega, sendo imediatamente expulso e deixando o local num camburão e ainda mascando a orelha. Essa breve apresentação faz-se necessária para que vocês, meus fãs queridos de todo o planeta, entendam meu desespero ao receber a ligação de minha comadre Sebastiana me pedindo para ficar com Cleitoválter durante o domingo, pois ela viria ao Rio para um batizado na Favela do Fubá Queimado, mas foi proibida por Nozão do Pó, chefe do tráfico local, de subir lá com o filho. A razão era simples, um ano antes eles passaram o feriado do Zumbi dos Palmares na comunidade e Cleitoválter tocou um terror, chegando ao ponto de fazer Nozão ter uma incontrolável crise de choro após ver Clei mijando num carregamento que acabara de chegar fresquinho da Bolívia. Outro motivo forte para que minha comadre não levasse o garoto era o temor de ele afogar o bebezinho na pia batismal. Isto posto, e sem alternativa, disse à comadre que, com a ajuda do Senhor, poderia sim ficar com Clei durante algumas horas.
E chegou o maldito domingo. Por volta das 13 horas, batem na porta do meu quarto, e meu coração quase parou. Então, pego uma medalhinha de São Francisco de Assis, aquele dos animais, faço uma breve prece ao santo e, segurando a medalhinha, caminho vagarosamente até a porta, talvez esperando ser fulminado por um raio e não ter de abri-la. Coloco a mão na maçaneta que, para tornar a tensão ainda maior, sai na minha mão. Trêmulo, consigo por a maçaneta no lugar e abro a porta bem devagar. Naquele instante teria início algumas das piores horas da minha gloriosa vida de herói. De súbito, levei um bico no saco. Após me ver cair, Cleitoválter entra correndo pelo quarto, pisando, antes, na minha cabeça. A dor absurda em minhas partes baixas e a falta de ar provocada pelo petardo que veio de baixo pra cima que me fez subir mais de um metro me fizeram imaginar que estava morrendo. Apenas como registro, após o impacto a medalhinha de São Francisco voou da minha mão e nunca mais a vi.
Enquanto eu tentava, ainda estirado no chão, voltar à vida, ouvi aquele moleque safado dizer que queria ir ao Mundo Encantado do Zé, o parque de diversões de Santa Cruz. Me apoiando na parede, eu me levantei e, com muito esforço pra falar, disse ao garoto: “Tudo bem, mas se você não se comportar lá, eu me mando!”. Ele aceitou o trato e, depois de mais um tempo me refazendo, fomos ao parque que ficava a uns cinco quarteirões da pensão do Vasco. Durante o caminho, Clei se distraía arremessando rebocos nos velhinhos que passavam, enquanto eu seguia meio à distância rezando um terço de Itu que ganhei numa rifa. Finalmente chegamos ao parque, que era realmente um espetáculo. Dentre as várias atrações, havia a Corrida Radical (as crianças entravam num caixote amarrado nuns jegues que saiam em disparada por um capinzal); o Trem Fantasma (um trenzinho que demorava meia hora pra percorrer um túnel se cinco metros repleto de monstros, caveiras e pôsteres da Elza Soares); Monga, a mulher Gorila (a moça que vestia a fantasia era uma das bilheteiras, reconheci pelo bafo); um leão de verdade (o bicho dava pena, era tão velho que a juba era branca e ele só tinha quatro dentes inteiros na boca); e a maior de todas as atrações, Demétrius, um equilibrista que, dizem, chegou a trabalhar num famoso circo da Espanha, mas como porteiro.
Logo ao chegarmos, Cleitoválter pediu um algodão doce, mas a onda dele não era comer a guloseima e sim pegar o pauzinho e sair espetando a bunda das mulheres. Ao ver o leão, que se chamava Osvaldo, Clei parou. Nesse momento, temi mesmo pelo futuro daquilo que um dia foi um animal selvagem. Cleitoválter foi se aproximando do leão que, magro que nem a porra, seguia olhando pro chão e não parava de chupar um punhado de capim que colocara na boca de manhã. Ao reparar que Clei estava a dois palmos de distância, o leão ergue a cabeça, olha pro garoto e lentamente abre a boca mostrando os quatro dentes (o quarto ficava lá atrás, mas dava pra ver) e o chumaço de capim na língua. O domador ainda previu o que estava por acontecer e, com a voz embargada, implorou a Cleitoválter: “Não faz isso não!”. Foi aí que, com a rapidez de um samurai, Clei dá uma tapa nos córneos do Leão. Realmente foi duro ver o bicho sair rolando pela direita, derrubar o domador e depois o biombo que servia de parede pro banheiro coletivo. A gritaria foi geral, um corre-corre danado. A cena da velhinha sentada no vaso e gritando que o mundo estava acabando não me sai da lembrança até hoje. Temendo que descobrissem que Clei fora o causador do tumulto, peguei o moleque pelo braço e saí correndo pra outra parte do parque. Antes eu tivesse ido embora. Paramos em frente à barraca de Demétrius, o equilibrista. Uma pequena multidão assistia quieta àquele cara alto, de bigode e enfiado num ridículo collant rosa e azul equilibrar com a cabeça um monte de copos cheio de água. Realmente era impressionante, tinha mais de cinquenta copos. E ainda havia um baixinho em cima de uma escada se preparando para colocar mais um. Minha clarividência de super herói me alertava naquele momento que algo terrível estava por acontecer, e imediatamente procurei Cleitoválter. Tarde demais. Aquele filho da p. já se preparava pra arremessar uma laranja parruda que ele achara no chão. Eu ainda gritei: “Nããããããooooo!!!!!!”. Mas foi em vão. O laranjão parecia um torpedo e foi direto na testa de Demétrius. A porrada foi tão grande, que a laranja voltou em sentido contrário e acertou a boca do palhaço, uma barraquinha que ficava na outra extremidade do parquinho. Com o impacto, antes de desmaiar, o equilibrista quase se afogou com tanta água que caiu sobre ele. Foi aí que, temendo que Cleitoválter demolisse inteiro o simpático Mundo Encantado do Zé, resolvi pegar o moleque e sair às pressas do local, devolvendo aquela criatura do inferno pra minha comadre, que já voltava do concorrido batizado.
Graças a Deus, essa foi a última visão material que tive desse moleque (em alguns pesadelos ele já deu o ar da graça algumas vezes). Informações não confirmadas dão conta de que Cleitoválter, hoje um rapaz, teria fugido de Quissamanduca, indo a pé até o Iraque e se tornado membro da TET, Trope de Elite Talibã.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
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